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sexta-feira, 18 de julho de 2014

Rio de Janeiro sob Estado de Sítio

15 DE JULHO DE 2014

Polícia e Judiciário fazem prisões arbitrárias, sem provas ou direito de defesa, rasgando Constituição. Mídia esconde fatos. Ministro da Justiça conivente


Por João Batista Damasceno,
entrevistado por Conceição Lemes, no Viomundo

Nessa sexta-feira 11, a 27ª Vara Criminal da cidade do Rio de Janeiro expediu 26 mandados de prisão temporária e dois de busca e apreensão de menores de idade.

A maioria foi detida ontem (12.07). Acusação: formação de quadrilha armada, com pena prevista de até três anos de reclusão.

Em entrevista coletiva nesse sábado, o chefe de Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Fernando Veloso, justificou: “Estamos monitorando a ação desse grupo de pessoas desde setembro do ano passado. A prisão delas vai impedir que outros atos de violência ocorram neste domingo”.

Veloso disse que a polícia fluminense tem provas “robustas” e consistentes” de que “essa quadrilha pretendia praticar atos violentos se não hoje, amanhã [domingo]”.

Na mesma coletiva , a delegada Renata Araújo, adjunta da Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI), alegou: “Eles planejavam ataques e se aproveitavam de problemas reais para fazer manifestações onde usavam artefatos para incendiar ônibus, depredar agências bancárias, entre outros”.

“Do ponto de vista substancial, não há como defender a legalidade de tais prisões”, denuncia o juiz João Batista Damasceno, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). “Violou-se o direito constitucional de liberdade de manifestação do pensamento e direito de reunião.”

“Na prática, implementaram-se medidas típicas de um Estado de Sítio, sem que ele tivesse sido decretado. Isso é crime de responsabilidade”, alerta. “Num Estado de Direito efetivo, as autoridades envolvidas numa situação como essa seriam chamadas a se explicar e poderiam, eventualmente, ser responsabilizadas.”

“A polícia fluminense se converteu na ‘polícia Mãe Dinah’ que investiga o futuro”, critica Damasceno. “Seria cômico não fosse trágico ao Estado de Direito e não representasse um perigo de volta ao tempo sombrio da ditadura militar, notadamente quando vigente o AI-5, que suprimira o habeas corpus.”

A propósito. Entre as coisas apreendidas pela polícia do Rio de Janeiro na residência dos presos há máscaras contra gás lacrimogêneo, viseiras, máscaras de carnaval, computadores, livros de capa vermelha e um revólver.

“O revólver foi apreendido na casa de um adolescente que milita politicamente. Só que é do pai do ativista, que tem porte legal de arma. A mídia tradicional tem a informação, mas não publica”, acusa Damasceno.

“A prisão de máscaras de carnaval, bandeiras vermelhas e até livros de literatura — pelo simples fato de terem a capa vermelha — é a prova do retorno da estupidez às práticas policiais dos tempos de ditadura”, vai mais fundo. “Mudou-se o nome, mas a política é a mesma.”

Segue a íntegra da nossa entrevista com João Batista Damasceno, que é juiz no Rio de Janeiro, doutor em Ciência Política e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Segundo o chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, as prisões seriam para impedir que atos de violência ocorressem neste domingo. A lei permite isso?

A Constituição dispõe que ninguém será considerado culpado sem que haja sentença condenatória transitada em julgado. Neste momento, estamos vivenciando casos de responsabilização antes que a pessoa cometa o fato tido como criminoso.

Não se trata apenas de prisão temporária, visando à apuração do fato cometido. Nem prisão preventiva, para proteção do processo, ou seja, das testemunhas e garantia da execução penal, caso o acusado seja condenado.

Trata-se de prisão antecipada ao fato, que não se pode afirmar que aconteceria. A militante Elisa [Elisa Quadros, conhecida como Sininho] estava no Rio Grande do Sul e certamente não viria ao Rio de Janeiro para as manifestações de encerramento da Copa.

No Rio de Janeiro, já tivemos um chefe de polícia que se envolveu com o crime organizado internacional, no caso a máfia espanhola, apontada, na época, como responsável pelo tráfico internacional de drogas.

Seria um absurdo defender a prisão do atual chefe de polícia a fim de evitar que pudesse – no futuro – cometer os mesmos crimes que teriam sido cometidos por aquele chefe de polícia no final do século XX.

Perante a lei, o atual chefe de polícia merece a mesma consideração que os demais cidadãos brasileiros. A violação ao direito de uns permite que o direito de outros também seja violado, inclusive do próprio chefe de polícia.

Mas é preciso lembrar que tais prisões foram decretadas pelo poder Judiciário, que tem funcionado como auxiliar da polícia e do governo na violação aos direitos dos cidadãos. Assim, não se espera que funcione como órgão garantidor dos direitos.

Essas prisões são ilegais então?

Elas foram efetuadas a pedido da polícia, mas por decretação do Judiciário.

Do ponto de vista formal, a polícia fez o que o Judiciário autorizou. Claro que na execução da medida no Rio Grande do Sul os policiais fluminenses não poderiam ter atuado. Eles agiram fora do limite territorial do Estado do Rio de Janeiro. Atuaram com excesso de poder.

O delegado encarregado da diligência gravou vídeo da prisão da militante no Rio Grande do Sul, expondo indevidamente sua imagem, e disse estar em auxílio à polícia gaúcha. Mas vendo o vídeo percebe-se que toda a diligência foi efetuada pela polícia fluminense.

Trata-se de uma polícia, que, desde a condecoração dos homens do Esquadrão da Morte nos anos 60 pelo governador Carlos Lacerda, atua à margem da lei.

Do ponto de vista substancial, não há como defender a legalidade de tais prisões.

Em entrevista, o chefe de polícia do Rio de Janeiro disse que tais militantes vinham sendo monitorados desde setembro de 2013 e que as prisões evitariam que participassem de manifestações neste domingo, final da Copa.

Porém, violou-se o direito constitucional de liberdade de manifestação do pensamento e direito de reunião.

Na prática, implementaram-se medidas típicas de um Estado de Sítio, sem que ele tivesse sido decretado. Isso é crime de responsabilidade. Num Estado de Direito efetivo, as autoridades envolvidas numa situação como essa seriam chamadas a se explicar e poderiam, eventualmente, ser responsabilizadas.

A Justiça determinou a prisão temporária. Por quê?

A prisão temporária, de discutível constitucionalidade, visa restringir a liberdade de uma pessoa a fim de coletar prova de crime que se tenha cometido.

A prisão temporária é uma prisão para preservar as provas, após a ocorrência de um crime. Trata-se de medida emergencial, por isso se afasta o suposto criminoso da cena do crime para a produção probatória necessária à sua acusação.

No caso presente, os militantes estavam sendo monitorados desde setembro de 2013. Não havia prova a ser coletada emergencialmente.

Fica cada vez mais evidente o reforço do Estado Policial, com exercício arbitrário do poder da polícia. Voltamos ao Brasil da Primeira República, quando a política se fazia com a polícia à frente. O estopim para a Revolução de 30 foi uma ação policial na casa da namorada de João Dantas, adversário do candidato a vice-presidente de Getúlio Vargas, João Pessoa.

A polícia do Rio apresentou várias coisas que teriam sido apreendidas nas residências dos presos. Pelas fotos publicadas na mídia, dá pra ver máscaras contra gás lacrimogêneo, viseiras, um revólver…

O revólver foi apreendido na casa de um adolescente que milita politicamente. Só que o revólver é do pai desse ativista político, que tem porte legal de arma. A mídia tradicional tem a informação, mas não publica, legitimando a atuação da polícia.

A polícia tratou o adolescente como se ele fosse o dono da casa. E diante da demonstração de que seu pai era o detentor de porte legal de arma, lavrou-se um registro de omissão de cautela. É uma forma de justificar a apreensão de uma arma que não poderia ser apreendida.

A polícia buscou dar um aparato legal à apreensão, sob o fundamento de que aquele que tem a posse legal da arma não a guardou adequadamente, tornando-a passível de apreensão. Mas isto não foi levado ao conhecimento da sociedade.

Pesa o fato de estarmos em ano eleitoral?

Com certeza, e a polícia quer mostrar eficiência na intimidação de opositores das políticas públicas lesivas aos interesses do povo.

Curiosamente, essa mesma polícia que prendeu os jovens militantes não se moveu diante do que não foi apurado na CPI do Cachoeira. Tampouco diante do furto das vigas do elevado da Perimetral, no Rio de Janeiro. Eram vigas com cerca 20 toneladas! Essa mesma polícia não foi capaz de esclarecer a autoria do furto, apesar do grande volume e notável valor econômico.

Igualmente não foram esclarecidos pela Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) os crimes cometidos por policiais. E a DRCI é que está atuando contra os militantes presos.

Explique melhor isso.

Computadores de juízes fluminenses foram invadidos e hackeados e o fato somente se comprovou porque o Ministério Público o esclareceu. A delegada titular de então direcionou a investigação para as vítimas.

No ano passado, crimes contra um magistrado, praticados por policiais pela internet, igualmente terminaram sem qualquer apuração. De nada adiantou a reunião do delegado titular da DRCI no gabinete da então chefe de polícia, Martha Rocha. Nada se apurou. As investigações são seletivas.

Desde a morte do jornalista Tim Lopes formou-se uma perversa aliança da mídia com a polícia. Já não se denunciam as arbitrariedades policiais como se fazia antes. O fato se agravou com a morte do cinegrafista Santiago de Andrade durante uma manifestação recente.

Não se registrou a morte do Santiago como uma fatalidade; nem que ele trabalhava sem os equipamentos de proteção que lhe deveriam ser fornecidos pela empresa de comunicação que o empregava.

A morte dele foi consequência da irresponsabilidade de militantes, que não desejavam sua morte, mas também da culpa grave do empregador que não lhe forneceu os meios adequados para proteção na cobertura de uma manifestação que se sabia poderia resultar em confronto ou conflito, como ocorre no restante do mundo.

A polícia fluminense se converteu na “polícia Mãe Dinah”, que investiga o futuro. Seria cômico se não fosse trágico ao Estado de Direito e não representasse um perigo de volta ao tempo sombrio da ditadura militar, notadamente quando vigente o AI-5, que suprimira o habeas corpus.

A prisão de máscaras de carnaval, bandeiras vermelhas e até livros de literatura — pelo simples fato de terem a capa vermelha — é a prova do retorno da estupidez às práticas policiais. Durante a ditadura, a mesma polícia fazia apreensão de livros pela cor da capa. Naquela época, não era a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática, mas o DOPS, Departamento de Ordem Política e Social. Mudou-se o nome, mas a política é a mesma.


O que representam essas prisões?

O apogeu da escalada do Estado Policial. Mas não é coisa que tenha sido formatada apenas pelo atual chefe de polícia. É parte de uma política federal de repressão aos movimentos sociais. A atuação tem sido similar em outros Estados. No Rio de Janeiro e em São Paulo ocorre maior repercussão. Mas esse tipo de atuação se intensificou após reunião dos secretários de Segurança dos estados no Ministério da Justiça.

É óbvio que nem tudo é coisa do governo federal; apenas a matriz. As polícias e o próprio Judiciário funcionam nesses episódios como forças auxiliares. O próprio chefe de polícia desempenha papel deste quilate.

O povo, para certo de tipo de político, só é bonito visto do palanque, para onde vai aplaudir o candidato. Assim pensava Benedito Valadares, velho político mineiro, que cunhou tal frase.

Anastácio Somoza, ditador nicaraguense derrubado pela Revolução Sandinista em 1979, dividia o povo em três segmentos: os amigos, a quem dava ouro; os indiferentes, a quem dava prata e os inimigos, a quem destinava chumbo.

As atuais políticas públicas têm o mesmo viés. Mas quem ficou com o ouro foi a FIFA. Aos que não se domesticaram para receber a prata restaram demolições de casas, remoções de suas comunidades, repressão brutal e prisões.

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