Foto: Antonio Scorza/AFP |
O que há de público sobre a atuação da ex-ministra na
resistência à ditadura
por Alvaro Bianchi*
Como não poderia deixar de ser, o passado da candidata Dilma
Rousseff tem atraído especial atenção da mídia. Sua participação em organizações
clandestinas de resistência à ditadura, particularmente a Vanguarda Armada
Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), poderia ser um incentivo para uma
reavaliação da história recente do Brasil. Mas essa oportunidade está sendo,
mais uma vez, perdida, com o aval da própria candidata, que se recusa a dar
declarações sobre o tema.
O Supremo Tribunal Militar esconde fontes inestimáveis para
essa reavaliação, dentre elas os originais dos processos nos quais Dilma
Rousseff é acusada. Infelizmente, o acesso a eles é extremamente difícil,
limitado ou simplesmente proibido pelas autoridades. Por sorte, cópias desses
processos integram a coleção Brasil Nunca Mais, seu conteúdo é público e pode
ser consultado por pesquisadores e interessados no Arquivo Edgard Leuenroth –
Centro de Pesquisa e Documentação Social, sediado no Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.
A coleção integra o acervo do Arquivo desde 1984, quando foi
doada por Dom Paulo Evaristo Arns, um dos artífices do projeto Brasil Nunca
Mais. A pesquisa desses documentos pode esclarecer episódios importantes de
nossa história recente, mas pouca coisa acrescentará ao que já se sabe sobre a
participação de Dilma Rousseff na resistência à ditadura. Os processos relatam
que ela foi presa no dia 16 de janeiro de 1970 na rua Augusta, em São Paulo, em
plena luz do dia. Os autos não registram que portasse arma ou tivesse oferecido
resistência. Investigações realizadas na casa onde morava também não
encontraram armas, somente alguns folhetos e um livreto de Stalin intitulado
Estratégia e Tática. Apenas má literatura política.
No inquérito policial de 30 de janeiro de 1970, Dilma Vana
Rousseff Linhares era chamada de “Joana D’Arc da subversão”, uma “figura
feminina de expressão tristemente notável”. Segundo seus acusadores, Dilma
“chefiou greves, assessorou assaltos a bancos”, mas não é dito que greves ou
que bancos. Ao contrário, a inquisição continuou de modo vago afirmando: “Não
há (como) especificar sua ação, pois tudo o que foi feito no setor teve sua
atuação direta”.
Para a infelicidade de alguns, entretanto, não há nada nesses
processos que vincule diretamente Dilma Rousseff a ações armadas, como
sequestros, expropriações ou atentados contra alvos civis e militares, nem
mesmo a greves ou manifestações estudantis. Ao contrário. Mesmo seus
inquisidores não conseguiram estabelecer esse vínculo, não restando --senão-
acusá-la vagamente de “subversão”.
Após sua prisão, Dilma foi levada para a sede da Operação
Bandeirantes (Oban), em São Paulo. No dia 26 de fevereiro foi lavrado o Auto de
Qualificação e Interrogatório, no qual consta um longo depoimento assinado pela
presa. Nesse depoimento, Dilma afirmou ter chefiado o Setor de Operações da
VAR-Palmares e, posteriormente, os setores Operário e Estudantil. Citou,
também, uma grande quantidade de militantes, fornecendo detalhes sobre a
participação destes em reuniões ou ações da organização. Seu nome, com
frequência, aparece associado nesse e em outros depoimentos de militantes à
administração do dinheiro proveniente do famoso assalto ao cofre que o
ex-governador Adhemar de Barros possuía na casa de sua amante Anna Capriglioni.
Mas a veracidade desse relato precisa mesmo assim ser
contestada. Em uma apelação judicial, a atual candidata à Presidência desmentiu
o depoimento prestado, afirmando que ele teria sido obtido “mediante coação
física, moral e psicológica”. Em outro Auto de Qualificação e Interrogatório, a
acusada repete que “foi torturada física, psíquica e moralmente; que isto se
deu durante vinte e dois dias após o dia 16 de janeiro (quando foi presa)”. Por
fim, em novo interrogatório, realizado em 21 de outubro de 1970, Dilma Rousseff
afirmou não reconhecer nenhuma das testemunhas de acusação, com a exceção de
Maurício Lopes Lima, um dos torturadores.
Apesar da evidente farsa judicial, o nexo entre Dilma
Rousseff e as ações armadas da VAR-Palmares não foi estabelecido sequer por
seus acusadores. Sua militância política era, entretanto, muito mais intensa do
que ela afirmou em seus depoimentos, com o propósito de dificultar a acusação a
ela e a seus companheiros. O cruzamento das informações contidas nesses
processos com outras fontes dá a entender que Dilma, ao contrário do que
afirmou no depoimento de outubro de 1970, havia sido ativa na organização
chamada Comando de Libertação Nacional (Colina). Mas também nessa organização,
ao que parece, não desempenhou ações armadas.
Ao final do processo no Tribunal Militar, Dilma Rousseff foi
condenada a quatro anos de prisão e a dez anos sem direitos políticos.
Sobreviveu à ditadura. Diferente foi o caso de muitos de seus companheiros de
resistência que sucumbiram na luta, como Eduardo Collen Leite, o Bacuri,
executado em dezembro de 1970, no sítio do delegado Sérgio Paranhos Fleury;
Iara Iavelberg, morta, segundo depoimentos, após ser torturada no Dops da
Bahia, em 1971; e Carlos Lamarca, executado em 1971 no interior da Bahia.
Tortura, assassinato, desaparecimento, sequestro e exílio são
palavras aterrorizantes. Para escrever a história deste País é preciso fazer
uso delas. Relembrar esses episódios é difícil e angustiante, mas não é
possível deixar esse passado definitivamente para trás sem torná-lo uma ameaça
presente. Cabe à memória recordar a barbárie para que ela não tenha lugar.
Suprimir a memória para não perder votos não é boa coisa. Falsificá-la para
ganhá-los também não.
*Alvaro Bianchi é diretor do Arquivo Edgard Leuenroth e
professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). Publicado por Carta Capital em 08/09/2010.
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