Um poema proporciona ao leitor
uma perspectiva aguda da realidade, porque não carrega de modo imediato o mundo
para o texto. O poeta transforma os fatos do mundo em fatos de linguagem que
têm a ver, por exemplo, com a tradição literária, com a língua e com influxos
subjetivos do autor do texto. Sendo, pois, apenas linguagem o poema é
intensificação de um olhar sobre o mundo; um olhar que é produzido
dinamicamente no trabalho da linguagem sobre o mundo; um olhar que considera
como elementos decisivos o leitor e o autor.
Nesse sentido, um poema é
também um aceno do autor em direção ao leitor, um desejo condensadíssimo de
empatia real, que considera a posição de cada um dos dois polos da situação de
produção da leitura no fulcro de contradições da existência social. Penso nessa
concepção de poesia após a leitura de um belo poema de Heitor Ferraz Mello,
publicado em seu livro Um a menos (7letras, 2009)[i]. Como o poema não é longo,
gostaria de propor aqui a sua leitura e uma breve discussão de alguns aspectos
de sua consistência poética. Ei-lo:
É uma tampa de panela
o céu baixo
sobre a fachada
do supermercado
Caminho sem crachá
por uma rua
deste bairro do Limão
A fábrica de notícias
as teias de aranha do sem-sentido
sujando a ponta dos dedos
Aqui –
olhando esta cidade
que me absorve
o dorso áspero do rio
que me engole
única matéria
cínica matéria
espaço que me invade
e me expulsa
sem ódio, sem rancor
a cabeça zonza de mercúrio
as vozes
de um país arbitrário
Do posto de gasolina
um homem de vento
agita seus braços bambos
Como amo este homem
que me acena
com seus gestos efusivos
de efusiva cordialidade.
p/ Ana Weiss
O mundo como reino da
mercadoria é o mundo deste poema. A dimensão do fetichismo é a realidade
contemporânea mais radical buscada pelo texto. Não será demais aludir à
conhecida definição de Marx para o fetichismo da mercadoria: dada a
universalização da produção de mercadorias, as relações sociais passam a ser
radicalmente mediadas pelas relações de troca entre mercadorias. Graças a isso,
o que seriam relações sociais entre seres humanos aparecem como relações entre
coisas. A lógica da mercadoria, portanto, é o esvaziamento da consistência
propriamente humana das relações sociais. A cidade grande, como habitat natural
do espetáculo fetichista, é o teatro perfeito para o recrudescimento desse
exaurir humano em prol da mercadoria.
O poema de Ferraz Mello
articula-se segundo uma dinâmica entre o objetivo (que carreia elementos
narrativos ao texto) e o subjetivo (que demonstra de modo acurado a carência
humana via lirismo sutil). Busca-se no poema uma concepção ontológica que, no
entanto, é recondicionada pelo mercantil. Note-se como a primeira imagem,
resgatada de um dos mais famosos textos de Baudelaire, “Spleen” das Flores do
Mal[ii], instala a sensação, vivida pelo eu-lírico e recomposta pelo leitor, de
violenta pressão da mercadoria sobre o horizonte do homem que olha. Abaixo do
céu, nada é possível ver, senão “a fachada do supermercado”. No entanto, ainda
que encurralado, o eu-lírico propõe-se o caminhar por entre o labirinto deste
“país arbitrário”, que é a cidade e que, por extensão, é também o próprio
poema. Esse caminhar, “sem crachá” é ativado graças à presença fantasmática de
“A flor e a náusea” de Carlos Drummond de Andrade, que dizia: “Preso à minha
classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. / Melancolias, mercadorias,
espreitam-me”.
O olhar do poeta estaria,
assim, condicionado por outra mercadoria, que é a própria literatura. No quadro
montado pelo poema de Ferraz Mello, a melancolia tornou-se já quase que uma
espécie de código anódino, uma vez que outra é a etapa da modernidade. O poeta
recorta e cola vozes passadas, para as quais a melancolia (o spleen) e a náusea
foram possíveis formas de resistência e crítica ao mundo reificado. No mundo
contemporâneo, a possibilidade crítica resiste residualmente na forma como o
poeta cria o poema, a partir de sua perspectiva, como uma máquina de possíveis
empatias: com a tradição que resgata fantasmas da modernidade, com o leitor que
assiste a tudo meio atônito, partilhando a pressão da mercadoria sem melancolia
ou náusea reativas. Se vamos ao dicionário, encontramos lá alguns significados
que nos interessam para o uso da palavra empatia neste contexto: “1) faculdade
de compreender emocionalmente um objeto; 2) capacidade de projetar a
personalidade de alguém num objeto, de forma que este pareça como que
impregnado dela e 3) capacidade de se identificar com outra pessoa, de sentir o
que ela sente, de querer o que ela quer, de apreender do modo como ela apreende
etc.”[iii] Todas essas definições estão compreendidas na forma como o poeta
constrói aqui o seu diálogo com o mundo da mercadoria e com o leitor.
A imagem final configura-se
como um delírio do eu-lírico-personagem, que nos é contado com ironia pelo
eu-lírico-narrador. O indivíduo desumanizado, exaurido de sentimentos e em
inexorável solidão, “ama” o boneco de posto que lhe acena com “efusiva
cordialidade”. Assim está exibida a ilusão que vivemos dia a dia: a de que quem
mais nos ama é a mercadoria, que nos acena com gestos da mais desumana
cordialidade. Uma desumana cordialidade que pode estar num poema, num boneco de
posto ou num candidato político sedutor. Para construir tal imagem, o autor
inventou, pela via do poema, uma perspectiva sobre o mundo social e, por meio
dela, pede a nossa empatia, agora no sentido de compreensão. É um poeta também
em situação fetichista, tornado mercadoria, que nos acena de dentro do poema,
ou que faz do poema o seu aceno em nossa direção e nos interpela como sujeitos
esmagados sob a tampa da panela de pressão do mundo capitalista. Ao nos ajudar
a reconhecer essa condição limite do contemporâneo, o poema de Ferraz de Mello
cumpre a importante missão de humanizar problematicamente o nosso cotidiano.
[i] A íntegra do volume pode
ser lida no Hot Site do Programa Petrobras Cultural, tendo em vista a sua
premiação na Edição 2006/2007 do evento. O link para acesso ao livro é:
http://www.hotsitespetrobras.com.br/cultura/upload/project_reading/0_Um_a_menos_mioloGRAFICA.txt
[ii] A primeira estrofe do poema “Spleen” de
Baudelaire é: “Quand le ciel bas et lourd pèse comme un couvercle/ Sur l’esprit
gémissant en proie aux longs ennuis,/ Et que de l’horizon embrassant tout le
cercle/ II nous verse un jour noir plus triste que les nuits”
[iii] HOUAISS, A. Dicionário
eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
Fonte: Horizonte
Cerrado
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