José Martins
Ao contrário do que dizem os
economistas, quanto maior o conteúdo tecnológico das mercadorias exportadas
pela China tanto menor o conteúdo de produção nacional e maior a presença de
empresas estrangeiras nas exportações.
Embora o valor unitário
agregado pelos 79 mil operários da fábrica da Foxcom, em Tai Yuan, norte da
China, para montar anualmente 57 milhões de aparelhos iPod da Aple equivale –
pelos cálculos de Powers[i]
– a apenas a 10 dólares do valor agregado globalmente ao aparelho, nas
estatísticas de comércio externo da China na alfândega dos Estados Unidos o
preço de importação daquele mesmo aparelho iPod é contabilizado por 275
dólares.
Essa “distorção” ocorre porque
grande parte do valor agregado das mercadorias chinesas exportadas não é
efetivamente produzida na China. É apenas montada. É importante calcular os
índices de conteúdo doméstico e externo nas mercadorias exportadas por um país,
pois indicam: 1º - a qualidade do seu processo produtivo de capital; 2º - a
possibilidade de alcançar um desenvolvimento científico e tecnológico similar
ao das economias dominantes.
A ESPECIALIZAÇÃO IMPERIALISTA E SEU
SEGREDO – O
liberalismo econômico, ou economia do imperialismo, procura justificar a
implantação da chamada “especialização vertical” no comércio externo das
economias dominadas. Essa receita leva aos enclaves industriais, ou Zonas de
Processamento de Exportações (ZPE), definidas pela OIT como “zonas industriais
que oferecem incentivos especiais para atrair investidores estrangeiros, nas
quais produtos importados sofrem algum tipo de processamento antes de serem
(re) exportados novamente”.
Nova localização geográfica das
linhas de montagem no território nacional: em geral na costa ou pequenas ilhas
próximas do continente (Offshore, extraterritorial). Apartheid geográfico e
econômico – indústria exportadora inorgânica à economia do país, a não ser com
o Estado e com a população operária dos menores salários do mundo. Mesmo a
maioria dos capitalistas chineses e administradores das subcontratadas (Foxcom,
etc.) não são produzidos internamente – são “importados” de Taiwan, Hong Kong,
Singapura, etc., para onde fugiram em 1949, derrotados pela revolução popular
de Mao Tse Tung.
A “especialização vertical” é a
forma imperialista atual de inserção da periferia nas cadeias globais de
produção. O contrário, a “especialização horizontal”, dependia do envolvimento
da produção interna e demais condições econômicas nacionais na produção da
mercadoria a ser exportada – era a forma antiga de tentativa (inevitavelmente
bloqueada pela ação imperialista) de inserção no mercado mundial. Predominou.
grosso modo, até os anos 1970.
O que é letal para as economias
dominadas: não existe meio termo entre a forma atual de exploração imperialista
e a antiga. Em países com grande extensão territorial e populacional, como
Brasil, Índia e Rússia, as burguesias nacionais e seus economistas ainda
procuram uma maneira indolor de se inserir nas cadeias produtivas globais, sem
virar mais uma Singapura tamanho família – e inventam na academia e alhures a
doutrina do “neodesenvolvimentismo”, em que o mercado mundial e as cadeias
globais de produção de capital são coisas naturais, seres da inovação
tecnológica, políticas cambiais e outros fetiches.
A “especialização vertical” é a
teoria das vantagens relativas de Ricardo – depois vulgarizada um pouco mais
pela teoria da dotação de fatores da escola neoclássica – adaptada
grosseiramente, agora, para a divisão internacional do trabalho especificamente
capitalista. Procura esconder a natureza daquela “distorção” chinesa mencionada
acima, imaginando vantagens relativas pela especialização em elevado conteúdo
de insumos importados nas mercadorias exportadas, ou, equivalentemente, com
elevado valor agregado externo materializado nas exportações – de acordo com o
modelo, essa forma de engajamento das economias dominadas nas cadeias globais
de produção/comércio seria altamente virtuosa, rápida disseminação do
conhecimento e do controle pelo país de modernas tecnologias (efeito catch-up)[ii].
Entretanto, como todo autismo
econométrico, o modelo da “especialização vertical” também é repleto de
simplificações e hipóteses irreais. Para que o modelo funcione pressupõe-se que
os insumos importados sejam realmente internalizados e integrados de forma
equilibrada pela economia nacional; assim, o grau de utilização desses insumos
é indiferente, absolutamente neutro, seja para a produção destinada à
exportação, seja para a destinada às vendas internas.[iii]
Isso não é confirmado
praticamente. Não faltam boas pesquisas – auxiliadas por modelos econométricos
formulados para ajudar a desvelar a realidade econômica e não escondê-la –
demonstrando que esses pressupostos básicos da teoria das vantagens
imperialistas são claramente desmentidos pelo caso chinês. A “fábrica do mundo”
é o caso mais emblemático devido exatamente ao generalizado Processing exports
[processamento de exportação] no país – a produção nacional crescentemente
enclausurada em centenas de zonas econômicas especiais e outras formas de
enclaves econômicos. Verifica-se inicialmente, pela tabela abaixo, um resumo
dessa metástase de ZPEs na economia mundial e a parte da China neste processo.
Em menos de dez anos
(1997/2006) o número de ZPEs no mundo aumentou mais de quatro vezes, de 845
para 3500. E o emprego saltou de 22.5 milhões para 66 milhões de trabalhadores.
Desse total, os 40 milhões de trabalhadores da China empregados em suas ZPEs
correspondia em 2006 a mais de 60% do total mundial (66 milhões). É importante
salientar que, em 2006, mais da metade das exportações chinesas são realizadas
pelas ZPEs. Devido a essa predominância do processamento de exportações no
comércio externo chinês, mais da metade das mercadorias importadas pelo país
nos anos recentes entrou marcada com o carimbo para reexportação, o que obriga
que elas não sejam consumidas internamente para não perder os incentivos
tarifários.[iv]
Essa camisa de força tem um
impacto negativo direto sobre a industrialização do país. Já vimos, no caso de
uma mercadoria isolada (iPod), quanto do seu valor agregado é produzido no
exterior e quanto é produzido na indústria doméstica. Vemos agora que também na
totalidade das exportações chinesas mais da metade do valor agregado não é
produzida no país.
Cálculos dos conteúdos
nacionais e estrangeiros nas exportações das ZPEs confrontados com os das
vendas internas e “exportações normais” – quer dizer, processadas fora das ZPEs
– mostra que, entre 1997 e 2006, ocorreu um acréscimo de aproximadamente 6
pontos percentuais na participação do conteúdo estrangeiro nas vendas internas
e exportações normais. Entretanto, na evolução das exportações das ZPEs, no
mesmo período, observa-se que também foram utilizados mais insumos produzidos
internamente em 2002 do que em 1997, com uma redução de insumos importados de
aproximadamente 6 pontos. Mas a tendência foi interrompida e, em 2006, retorna
ao mesmo nível de 1997. Simultaneamente, a tendência de elevação dos insumos
externos nas exportações normais e vendas internas também foi interrompida
entre 2002 e 2006.
A razão mais aparente para essa
reversão do cenário é que a participação de empresas totalmente estrangeiras
(cujas exportações têm a menor participação do conteúdo de valor agregado
nacional) nas exportações chinesas aumentou dramaticamente de 29,4% para 39,3%
entre 2002 e 2006.
Outra razão, mais fundamental:
para compensar a forte queda da taxa de lucro das empresas globais na crise de
2000/2001, acelera-se o deslocamento de suas linhas de produção para economias
de “baixo custo” e altas taxas de lucro. Mais decididamente para a China e
outras miseráveis economias asiáticas, onde predomina a extração de mais-valia
absoluta como forma de valorização do capital. Vejamos alguns números que
ilustram esse processo.
As empresas globais comandam o
espetáculo. Já em 2002, em 63 ramos listados no território chinês, pouco mais
de dez ramos industriais centralizavam quase a metade das exportações chinesas
de manufaturas e apresentavam uma participação de valor agregado nacional
abaixo de 50%. São ramos que exportam as mercadorias tecnologicamente mais
sofisticadas das exportações chinesas: computadores, equipamentos de
telecomunicações, eletrodomésticos, aparelhos de comunicação, etc. Quanto maior
o conteúdo tecnológico das mercadorias exportadas, menor o conteúdo nacional e
maior a presença de empresas estrangeiras nas exportações do ramo. Essa é a
realidade que desmente a propaganda da teoria das vantagens imperialistas.
Como se vê nos números acima,
as características principais desses ramos que centralizam as exportações da
“fábrica do mundo”:
1. As ZPEs são responsáveis por
quase dois terços das exportações do país 2. O valor adicionado produzido
internamente é minúsculo.
3. As empresas globais – dos
EUA, Japão e Alemanha, principalmente – jogam um papel avassalador.
Portanto, a aparência de uma
estrutura sofisticada de exportações com alta intensidade tecnológica na China
é em grande medida uma enorme ilusão estatística, o que não deixa de ser
aproveitado pelos seus economistas para a mistificação teórica sobre as
vantagens da produção/comércio imperialista para evolução do processo de
produção de capital no país.
Fonte: Núcleo de Educação
Popular 13 de Maio - São Paulo, SP.
CRÍTICA SEMANAL DA ECONOMIA
EDIÇÃO 1148/9– Ano 28; 3ª e 4ª
semanas Maio 2013.
E-mail:
criticasemanal@uol.com.br
Tel. (11) 92357060 ou (48)
96409331
[i] Powers, W.M. – The Value of Value Added:
Measuring Global Engagement with Gross and Value-added Trade [O valor do valor
agregado: medindo a participação global em termos de comércio bruto e de valor
agregado] – U.S. International Trade Commission, Washington, DC. November 2012.
[ii] Veja esse tipo de
apologia às virtudes das Export Processing Zones em UNIDO Industrial
Development Report 2009, principalmente no capítulo What makes a special
economic zone successful? [O que faz o sucesso da zona econômica especial?] e
em RODRIK, Dani “What’s so special about China’s exports? [O que é tão especial
nas exportações da China?] NBER Working Paper 11947, Cambridge. (2006)
[iii] Hummels, D., J. Ishii and K. Yi. – “The Nature and Growth of
Vertical Specialization in World Trade,” [Natureza e Crescimento da
Especialização Vertical no Comércio Mundial] Journal of international
economics, 2001
[iv] Powers, W.M., idem. Veja também: Koopman, R.; Wei,S.; Wang,Z. – How
much of Chinese exports is really made in China? Assessing foreign and domestic
value-added in gross exports. [Quanto das exportações chinesas é realmente
produzido na China? Calculando o valor agregado estrangeiro e doméstico nas
exportações]. U.S. International Trade Commission, Washington, March 2008. A
não ser quando indicado, utilizaremos doravante os dados destes dois excelentes
trabalhos.
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