“A vinda de médicos cubanos para
trabalhar em áreas de difícil fixação tem valor. No entanto, como na maior
parte das políticas sociais dos governos petistas, uma fachada “progressista”
procura encobrir os retrocessos tremendos. Ao acenar com a possibilidade de
amainar as carências históricas do povo brasileiro no acesso a serviços de
saúde em uma conjuntura de ataques frontais ao SUS, o governo Dilma combina
demagogia com privatização.”
por Felipe Monte Cardoso,
Bruna Ballarotti,
Felipe Corneau
e Bernado Pilloto*
24 de Maio 2013,
Correio da Cidadania
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“Os
aspectos positivos desta suposta medida não devem aparentar ser mais
importantes do que de fato são. A extrema concentração de médicos no setor
privado cresce sem controle. Para piorar, o governo Dilma empreende ataques
organizados aos marcos constitucionais do SUS e está colocando em risco a noção
de direito à saúde construída pela Reforma Sanitária.”
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Há cerca de um mês, a imprensa
repercute notícias sobre medidas para facilitar a contratação de médicos
estrangeiros para áreas de difícil fixação destes profissionais (como no
interior do país). A medida mais polêmica diz respeito à iniciativa de
contratar cerca de 6 mil médicos vindos de Cuba. Há dois tipos de reação mais
comuns: os tradicionais donos do Brasil destilam argumentos reacionários e
preconceituosos contra a proposta. No outro pólo, o governismo acrítico
acredita que, finalmente, a presidenta encontrou a salvação definitiva para o
problema. O Setorial de Saúde do Partido Socialismo e Liberdade quer discutir
os possíveis desdobramentos deste pequeno e insuficiente avanço numa conjuntura
de enormes ataques do governo Dilma ao SUS.
A existência de médicos
estrangeiros não é incomum em outros países. Nos EUA, 27% do total de médicos
atuantes são formados no exterior; no Reino Unido, 37%; quase metade dos
residentes em Medicina de Família e Comunidade na Espanha é de fora da União
Europeia. E o problema persiste: de acordo com a Association of American
Medical Colleges, os
EUA terão 63 mil médicos a menos do que precisam, em 2015, e são acusados
de “roubar”
médicos dos países pobres. Ainda assim, os EUA têm 2,4 médicos por mil
habitantes, nível comparável ao de Reino Unido (2,7) e menor que o da Espanha
(4). Cuba tem o melhor índice: 6,7. Em nosso país, a força de trabalho médica
ainda é um luxo (1,8 médicos por mil habitantes), se comparado àqueles (dados do Banco
Mundial).
O Brasil é um país em que as
diferenças entre classes ricas e classes pobres, estados ricos e estados pobres
e entre cidades do interior e grandes cidades, são gritantes. Estas diferenças
se expressam, por exemplo, na renda familiar, no consumo de alimentos saudáveis,
no acesso à educação de qualidade, no tempo gasto para ir e voltar do trabalho
e na existência de rede de esgoto. Os problemas de acesso a profissionais de
saúde (o caso mais grave é dos médicos) e a medicamentos são uma expressão do
país segregado em que vivemos. Como a situação de saúde do povo brasileiro é
determinada por todos estes fatores, sabemos que apenas transformações
profundas poderiam mudar radicalmente o cenário. Não é o que acontece no Brasil
de hoje
Mesmo assim, uma medida que
conseguisse paliar este problema seria digna de elogio. No entanto, o governo
até o momento não fez nenhum
anúncio oficial, como, de resto, tem sido sua prática: negociar as grandes
questões nacionais por debaixo dos panos, sem debate público. Exemplo é a
proposta de mais isenções aos empresários da saúde.
Supondo que os rumores sejam
verdade e que o governo Dilma resolva se contrapor ao conservadorismo das
corporações médicas, seria de se apoiar a contratação de médicos formados em
Cuba pelas seguintes razões: em primeiro lugar, pela qualidade da formação dos
médicos, que desde o começo do curso estagiam em unidades de Saúde da Família e
sabem que a saúde não é apenas prescrição de medicamentos ou realização de
exames, mas embasam sua prática clínica na noção de que a vida social é que
determina as condições de saúde de uma população. Por isso, são profissionais
que, mais que curarem diarreia ou prescreverem remédios para hipertensão, trabalham
na perspectiva do cuidado integral à saúde: tratamento, prevenção,
reabilitação, promoção.
Em segundo lugar, o Brasil
precisa beber desta vasta experiência. Cuba, mesmo sendo um país pobre, tem
expectativa de vida, mortalidade infantil, mortalidade materna, e muitos outros
indicadores melhores que os nossos e que o resto da América Latina, segundo a Organização
Panamericana de Saúde. Em artigo recente publicado no “New England Journal
of Medicine”, um dos mais importantes periódicos médicos no mundo, o sistema
cubano foi bastante elogiado conforme
lembrou o médico Pedro Saraiva. Apenas a idiotia incurável da revista
“Veja” é capaz de condenar os sensacionais avanços da saúde cubana desde o
triunfo da revolução. Se considerarmos então o histórico de solidariedade
internacional por parte de Cuba, e a atuação desses médicos em mais de 70
países, por mais de quatro décadas (frequentemente nas condições mais
adversas), a virulência dos ataques fica ainda mais despropositada. Sendo
assim, é de enorme irresponsabilidade condenar o alívio que seria para milhares
de municípios, vilas, lugarejos, aldeias ou ribeiras, poder contar, muitos pela
primeira vez, com profissionais médicos bem formados.
No entanto, os aspectos
positivos desta suposta medida não devem aparentar ser mais importantes do que
de fato são. A extrema concentração de médicos no setor privado cresce sem
controle. De acordo com estudo do CFM publicado em 2011, há quatro vezes mais
médicos no setor privado que no público, e entre 2002 e 2009 a diferença
cresceu. Para piorar, o governo Dilma empreende ataques organizados aos marcos
constitucionais do SUS e está colocando em risco a noção de direito à saúde
construída pela Reforma Sanitária.
Assim, a escassez absoluta e
relativa (referente às desigualdades regionais e entre o SUS e a saúde privada)
da força de trabalho médica tende a crescer com o avanço da privatização feita
pelo governo federal. Assim, a chegada dos médicos estrangeiros não apenas não
irá resolver o problema, como ocorrerá em vigência de outro retrocesso político
de Dilma: o sucateamento da Atenção Primária à Saúde (APS).
Todos os países com sistemas
universais de saúde (como Cuba, Reino Unido, Espanha, Canadá, Portugal) centram
sua organização na APS, que utiliza médicos generalistas. O governo Dilma rema
no sentido contrário: investe em Unidades de Pronto-Atendimento, centra
esforços em parte de cuidados especializados, medidas importantes, mas quando
tomadas de forma isolada prejudicam o atendimento à saúde. Para piorar, suas
“soluções de emergência” para o problema da APS, como o PROVAB, redundaram em
estrondoso fracasso: muitos médicos desistem de trabalhar nas equipes de áreas
mais carentes e distantes, pela absoluta falta de estrutura e apoio prometidos
pelo Ministério da Saúde. A falta de médicos generalistas, mais grave nas periferias, estados pobres e
cidades pequenas, continua gritante.
Neste cenário, a precariedade é
regra: cerca de 70% da força de trabalho do SUS trabalha sob contratos
precários, sem garantia de recebimento de salários e direitos. E aqui reside
outro problema que não tem solução pela vinda dos médicos estrangeiros: as
deficiências da política brasileira de saúde ocorrem pela carência de todos os
tipos de profissionais de saúde (não apenas médicos) no sistema público de
saúde – caso curioso de perversidade à brasileira, já que há milhares de
psicólogos, enfermeiras, fisioterapeutas, entre outros, desempregados.
Além disso, a contrarreforma
universitária iniciada por FHC e continuada por Lula e Dilma deixou a formação
da força de trabalho médica nas mãos dos empresários da saúde. Isto desvirtua o
processo de formação de profissionais, que deveria ser na lógica do direito à
saúde, passando a se dar nos marcos da ultramercantilização dos direitos
sociais dos últimos anos. Esta tendência os médicos cubanos não têm capacidade
de reverter.
Por fim, a suposta proposta do
governo não muda a enorme desigualdade na distribuição de médicos em áreas
chave como urgência/emergência ou cuidados especializados e de alta
complexidade no SUS. Do contrário, as políticas de Dilma têm acentuado o
caráter privatizado destes setores, que continuarão como gargalos no acesso aos
serviços de saúde por parte da maioria do povo brasileiro.
Em suma, a vinda de médicos
cubanos para trabalhar em áreas de difícil fixação tem valor. No entanto, como
na maior parte das políticas sociais dos governos petistas, uma fachada
“progressista” procura encobrir os retrocessos tremendos. Ao acenar com a
possibilidade de amainar as carências históricas do povo brasileiro no acesso a
serviços de saúde em uma conjuntura de ataques frontais ao SUS, o governo Dilma
combina demagogia com privatização e quer convencer de que isto ajudaria na
construção do direito à saúde.
A falta completa de perspectiva
de uma política universalista de saúde no curto, médio e longo prazo atesta o
profundo distanciamento deste governo com os movimentos que, no passado e no
presente, sonharam e sonham com uma totalidade de mudanças em direção à
emancipação do povo brasileiro.
A história de Cuba mostra que
nas sociedades periféricas e de origem colonial, o protagonismo do povo foi
decisivo para derrotar os interesses do imperialismo e dos negócios e
privilégios nativos, inclusive no caso da saúde. No Brasil do lulismo, o
paradigma da “inclusão via mercado” faz parte de uma conta que não fecha. O
profundo mal-estar que experimenta o nosso povo no que tange a saúde é apenas
uma faceta da bomba-relógio que os neoprivatistas ajudaram a armar. Que não
será desmontada com a vinda de valorosos e valorosas colegas cubanos e cubanas.
***
*Felipe Monte Cardoso, Bruna
Ballarotti e Felipe Corneau são médicos. Bernado Pilloto é técnico
administrativo em educação, e são membros do Setorial de Saúde do Partido
Socialismo e Liberdade.
Fonte: Tita
Ferreira - Leituras
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