Ruy Braga
Acabo de receber a notícia da
morte de Edmundo Fernandes Dias. Estou arrasado. Perdi um grande amigo, um
mestre insuperável e um exemplo político. Edmundo foi amigo de uma generosidade
realmente inigualável. Estilo agregador, sempre buscou extrair o melhor de cada
um, apoiando nossos diferentes projetos como alguém que está sempre torcendo a
favor.
Como mestre, ele foi daqueles
que deixam marcas profundas em nossa trajetória. Sarcástico, incisivo e
brincalhão, suas aulas eram sempre desafiadoras e Edmundo sabia transformar
certezas em dúvidas como ninguém. Esta é a principal lição que retive das
muitas que colhi como seu aluno e discípulo. Questionar, questionar e
questionar. E quando estiver exausto: questione mais um pouco, só por
garantia...
Mas, gostaria de rememorar seu
exemplo. Como sabemos, ele foi um dos maiores estudiosos brasileiros do
pensamento do dirigente revolucionário e líder histórico do comunismo italiano,
Antonio Gramsci. Sua interpretação dos escritos pré-carcerários do sardo,
reeditada no volume Gramsci em Turim: a construção do conceito de hegemonia
(Xamã, 2000), alimentou toda uma vertente interpretativa que, entre fins dos
anos 1970 e início dos anos 1990, recusou-se a ver na obra do genial sardo uma
interpretação filo-idealista da cultura europeia. À época, como hoje em dia,
desejávamos trazer Gramsci pra pensarmos a política brasileira, as lutas de
classes na semiperiferia e a estratégia socialista mais adequada para o país.
Nesse ponto, diria que, para
toda uma jovem geração de jovens militantes do Partido dos Trabalhadores
desejosos de transformar radicalmente o Brasil – ao mesmo tempo em que o
interpretava –, Edmundo foi um autêntico porto seguro. Tendo se batido durante
muitos anos contra a primeira onda de apropriações “culturalistas” de Gramsci
levadas a cabo por intelectuais ligados ao PCB e que esterilizavam sua dimensão
revolucionária, Edmundo soube resgatar o estrategista da Revolução Italiana,
líder incontestável dos Conselhos Operários de Turim e fundador do comunismo na
Itália, do cárcere stalinista.
Ao fazê-lo, ofereceu-nos
generosamente um Gramsci total, dialético, político, comunista, revolucionário,
renovado, ou, conforme a expressão que criamos para expressar nosso projeto, um
“outro Gramsci”. Edmundo foi o principal inspirador dessa interpretação
alternativa do sardo – e que teve continuidade em obras como: O laboratório de
Gramsci, de seu orientando, Álvaro Bianchi. Uma interpretação construída por um
dirigente sindical que ajudou a fundar o PT, a CUT, o Andes-Sindicato Nacional,
a Adunicamp, e, após romper com o PT em meados da década de 1990, o PSTU e a
CSP-Conlutas, organização da qual sentia profundo orgulho e na qual se
destacava como um de seus mais entusiasmados militantes “de base” (como gostava
de se considerar).
Edmundo estendeu sua fértil
interpretação de Gramsci para muitas fronteiras. Todas elas associadas à
interpretação das lutas políticas das classes subalternas brasileiras. Ele foi
um mestre do marxismo revolucionário no país, naquilo que este verdadeiramente
exige de seus intelectuais: elaborar e tornar coerente os problemas colocados
pelas massas.
Suas análises mais recentes
encontram-se publicadas em livros editados pelo partido que ele ajudou a
construir: Política brasileira: embates de projetos hegemônicos (Sundermann,
2006), Revolução e história: das Teses ao Manifesto (Sundermann, 2011) e
Revolução passiva e modo de vida: ensaios sobre as classes subalternas, o
capitalismo e a hegemonia (Sundermann, 2012).
Estive com Edmundo há duas
semanas e, há exatamente sete dias, acompanhado por Valerio Arcary e Mauro
Puerro, voltei ao hospital onde ele encontrava-se internado, sem poder entrar
na UTI. Valerio representou-nos na ocasião. Nossa última conversa foi sobre
projetos para o futuro. Ele manifestou seu desejo de, restabelecida a saúde,
colaborar mais ativamente com o blog Convergência e voltar a ministrar cursos
de formação para jovens militantes do PSTU. Conversamos por horas a fio e o
tempo correu sem que eu me desse conta de que o estava esgotando. Ao nos
despedirmos, ele reclamou que a revista Outubro, revista que ele ajudou a
fundar e na qual atuou como secretário de redação por vários anos, não estava
enviando os artigos pra ele avaliar.
Disse que, conscientes de seu
estado de saúde, estávamos tentando o preservar desse tipo de trabalho. Ele
retrucou dizendo: “mas você leciona sociologia do trabalho e ainda não aprendeu
nada sobre a dialética do trabalho. Isso não é trabalho alienado. Isso é
emancipação. Mande-me logo os artigos!”.
Isso diz muito sobre o amigo, o
mestre e o exemplo, que acabo de perder.
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