I Imagem: Connor Maguire, The honnest banker-gangster |
por ANTONIO MARTINS
08/04/2013
Vazamento inédito revela pontos obscuros
da globalização, onde bancos e multinacionais misturam-se ao crime organizado,
para se esconder das sociedades.
Um facho de luz está iluminando
o lado obscuro do poder global desde o início do mês, sem que os jornais
brasileiros pareçam interessados em segui-lo. Após 15 meses de trabalho, uma
equipe do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, em inglês) começou a publicar reportagens
muito constrangedoras sobre os centros financeiros offshore, também conhecidos
pelo termo eufemístico de “paraísos fiscais”. Por envolverem políticos e
magnatas conhecidos do público, as revelações já estão provocando sobressaltos
políticos em países tão diferentes como França (onde caiu o ministro das
Finanças), Canadá, Indonésia, Filipinas, Venezuela, Rússia e Azerbaijão.
O trabalho do ICIJ tem como
fonte um vazamento de informações extraordinário. Um operador anônimo, de uma
instituição financeira que opera nas Ilhas Virgens britânicas, enviou a Gerard
Ryle, diretor do Consórcio, um disco rígido de computador contendo 260
gigabytes de dados – 2,5 milhões de documentos, acumulados ao longo de trinta
anos. Em volume, são 160 vezes mais dados que o material vazado, pelo
Wikileaks, a partir do Departamento de Estado dos EUA. Por isso, o caso
tornou-se internacionalmente conhecido como o “offshore leaks”. Uma equipe de
86 jornalistas, de 37 publicações (nenhuma brasileira…) analisou as informações
e está produzindo as reportagens. É possível acompanhá-las, por exemplo, em
seções especiais criadas no próprio site do ICIJ, mas também no Guardian, de
Londres, e no Le Monde, de Paris.
A importância política dos
documentos é proporcional a seu tamanho. Até o momento, estes jornais preferem
destacar o lado mais vistoso das revelações: governantes, super-ricos e
celebridades que escondem dinheiro em pontos longínquos do planeta, para
sonegar impostos. Mas o que já foi publicado permite outra leitura, menos superficial.
As praças offshore não podem mais ser vistas como ilhas tropicais paradisíacas,
para onde flui a riqueza resultante de alguns negócios marginais. Elas são uma
engrenagem fundamental no centro do capitalismo contemporâneo.
Primeiro, por seu próprio
tamanho. Conforme estudos citados pelo ICIJ, os centros offshore acumulam
depósitos estimados entre 21 e 31 trilhões de dólares – entre um terço e metade
do PIB
anual do planeta. Segundo, por sua própria constituição. As ilhotas
pitorescas que compõem a galáxia do offshore são apenas a franja (e, num certo
sentido, a fachada), numa vasta rede oculta em cujo centro está Londres – a
principal praça financeira do mundo.
A geografia política de tal
rede é descrita — numa entrevista que Outras Palavras publica também hoje — por
Nicholas Shaxon, autor de obra recente e fundamental sobre o offshore: Treasure
Islands: Uncovering the Damage of Offshore Banking and Tax Havens1. Ele
explica: a grande teia do sistema financeiro nas sombras parte da capital britânica
e articula-se por meio de dois núcleos intermediários, de onde se estende por
todo o planeta. Um dos núcleos tem base em três ilhas do litoral inglês –
Jersey, Guernsey e Man – e abre-se para Ásia e África. Outro, baseia-se nas
Ilhas Cayman e Bermundas, voltando-se para as Américas.
A Grã-Bretanha articula a
enorme estrutura de captação de recursos. Mas os Estados Unidos são o principal
destino do dinheiro, prossegue Shaxon. Maiores devedores do planeta há décadas,
os EUA abriram-se, a partir dos anos 1970, ao mundo offshore. Acostumaram-se a
fechar suas contas externas, cronicamente deficitárias, atraindo também
dinheiro de origem duvidosa – ao qual oferecem isenções fiscais e proteção
legal.
É neste mundo de finanças
ocultas e anonimatos, relata o ICIJ, que escondem e “lavam” (legalizam) seu
dinheiro as grandes redes do crime organizado: máfias de distintas
nacionalidades, políticos corruptos que se apropriam de recursos públicos,
traficantes de seres humanos, beneficiários de caça proibida, escroques de
todos os tipos. O esquema é conhecido. Quem precisa dar aparência de legalidade
a uma soma obtida por meios ilícitos transfere-a para uma conta bancária
offshore. Aproveita-se dos impostos muito baixos cobrados pelos “paraísos
fiscais”. Mais tarde, reintroduz o dinheiro no país, na forma de crédito
proveniente de uma instituição respeitável, com sede na Suíça, em Luxemburgo ou
nas Ilhas Virgens. Quem irá investigar a origem primeira do dinheiro?
Mas o circuito que abastece o
crime seria insustentável, continua Nicholas Shaxon, sem uma presença luxuosa:
a das grandes corporações transnacionais. Praticamente todas as empresas com
atuação internacional, relata ele, atuam offshore. Fazê-lo tornou-se quase
obrigatório, na dinâmica que a globalização assumiu. Permite evasão sistemática
de impostos, explicada na entrevista. A tal ponto que não operar offshore
penalizaria as corporações eventualmente dispostas a respeitar seus sistemas
tributários nacionais, obrigando-as a cobrar preços superiores aos das concorrentes.
Surge, aqui, um primeiro
círculo de conveniências e cumplicidades. Se as transnacionais deixassem o
circuito offshore, raciocina Shaxon, ele ira tornar-se rapidamente
insustentável. Seria uma confraria frágil de milionários fora-da-lei,
facilmente denunciável e desmontável. Sua força, e sua suposta honorabilidade,
é transferidas pelas grandes corporações.
Por elas e, é claro, pelos
bancos. Quase todas as instituições bancárias importantes, conta a reportagem
do ICIJ, têm relações com a rede financeira das sombras. Por meio delas,
tornam-se capazes de oferecer aos clientes premium a faculdade de ocultar
dinheiro obtido legal ou ilegalmente – e de reintroduzi-lo no país, sempre que
necessário.
Os bancos chegam a competir
entre si, na oferta de serviços eficazes de ocultamento de recursos. Num
documento vazado, o Crédit Suisse, com sede em Zurique e representações em todo
o mundo (inclusive no Brasil, onde “patrocina” a Orquestra Sinfônica de São
Paulo), é descrito como “o Santo Graal” da rede. Os procedimentos que adota nas
transferências de recursos são tão “eficientes” – admira-se um operador
offshore – que autoridades policiais ou bancárias eventualmente interessadas em
descobrir a identidade de um depositante irão “deparar-se com uma muralha
blindada”… Mas não se trata de um exemplo isolado. Reportagens do Der Spiegel e
do Le Monde estão revelando como instituições “respeitáveis” como o Deutsche
Bank (alemão), Banque National de Paris e Paribas (franceses), IMG e Amro
(holandeses) envolveram-se no esquema.
Nem mesmo a crise iniciada em
2008 parece abalar o mundo financeiro clandestino. Segundo o ICIF, entre 2005 e
2010, os depósitos dos 50 maiores bancos do mundo mais que duplicaram,
avançando de 5,4 para 12 trilhões de dólares. Este salto ajuda, aliás, a
compreender o cenário global em que se alastra o universo offshore; e também o
ambiente ideológico que o alimenta. Na última década, a desigualdade
espalhou-se pelo mundo (com a exceção notável da América do Sul). Mesmo num
país como os Estados Unidos, 400 pessoas detêm tanta riqueza quanto metade da
população. O grupo restrito dos ultra-ricos formou o que o filósofo francês
Patrick Viveret chamou de uma oligarquia
financeira. Esta possível “nova classe” tem enorme poder econômico e
político. Deseja ter mãos livres tanto para intervir nas decisões dos Estados
nacionais quanto para driblá-las, quando contrariam seus interesses. Vê, numa
galáxia financeira opaca, um instrumento extremamente funcional para preservar
seus privilégios e ampliar seu poder.
É possível enfrentar o universo
offshore? Do ponto de vista técnico, não faltam alternativas, explica Nicholas
Shaxon. Os fluxos de recursos para os “paraísos fiscais” podem ser limitados
tanto por tributação mais elevada – que inibe as transferências – quanto por
restrições diretas dos Estados. O difícil, ressalta o autor de Threasury
Islands, é enfrentar a força política da oligarquia financeira. Entre os grupos
diretamente interessados em manter a situação atual estão banqueiros, grandes
empresas, bancadas políticas corruptas e crime organizado.
A mídia exerce um papel central
na resistência às mudanças. Os jornalistas dos meios tradicionais normalmente
sabem muito pouco sobre finanças internacionais, observa Shaxon. Nas raras
vezes em que escrevem sobre o tema, recorrem aos “especialistas do mercado
financeiro” – precisamente os que mais têm interesse em que nada mude.
É sintomático que nenhum
jornal, TV, rádio ou portal de internet brasileiro tenha dado destaque ao
Offshore Leaks. Considere a participação dos bancos e das transnacionais em sua
carteira de anunciantes…
Mas é animador que, em todo o
mundo, o episódio tenha alcançado tanta repercussão. A crise financeira tornou
as sociedades mais críticas. A vida de luxo e ostentação dos altos executivos é
vista com desconfiança e desconforto crescentes. Muitos julgam-na uma afronta,
diante do empobrecimento de vastos setores sociais.
Nunca houve condições tão
favoráveis para abrir um debate sobre o assunto. Um sintoma é o fato de você
estar lendo este texto, apesar do boicote da mídia brasileira sobre o tema…
1[Ilhas do Tesouro: revelando
os danos dos paraísos fiscais e das finanças “offshore”, infelizmente ainda sem
tradução em português – ler verbete na Wikipedia, ou comprar]
Fonte: Outras
Palavras
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