Cartaz de Nota de Rodapé |
por Milton Ribeiro
Publicado em 8 de abril
de 2013
O filme Nota de Rodapé, de
Joseph Cedar, acendeu todas as minhas luzes internas de “Perigo, perigo!”, como
dizia o robô de Perdidos no Espaço. É uma produção israelense absolutamente
atemporal e universal, nada tendo a ver com a nojenta política do país. Eliezer
e Uriel Shkolnik são pai e filho, ambos
acadêmicos, que dedicam a vida ao estudo do Talmude, o livro sagrado dos
judeus. O pai Eliezer é um turrão deprimido que se sente rejeitado pelos
colegas. Apesar de passar seus dias estudando em bibliotecas com tapa-ouvidos
para não ser perturbado pelo mundo, publicou pouco e apenas pode ser orgulhar
de uma nota de rodapé num trabalho seminal de sua área de estudo. É o homem de
muitos livros (ou papéis) que se vê no cartaz. Por outro lado, Uriel é uma
estrela ascendente bajulada por seus pares, um bando de inexplicáveis
semideuses. Também publica muito, vende muito e é sempre reconhecido.
O filme inicia justamente com a
cena de umas das premiações recebidas pelo filho. O pai assiste irritado,
suportando com dificuldade o desajeitado elogio que o filho lhe faz. Sei que na
vida acadêmica, ambiente de estabilidade empregatícia onde grassam paixões e
vaidades oceânicas, algumas pessoas – nem todas — cultivam espetaculares ódios.
Meu interesse pelo filme acendeu-se de forma ainda mais feérica por ter vivido
— ou ter sido casado — com duas mulheres extremamente competitivas na vida
universitária. Ou seja, quando o filme começou, logo concluí através de minha
experiência: que legal, esses caras vão se matar. Ajeitei-me na cadeira porque
sabia que veria gente efetivamente decidida a envenenar a vida do próximo sem a
menor compaixão. Não me decepcionei.
Tudo vai caminhando
pessimamente na família até que Eliezer, o pai, recebe o Prêmio Israel, a maior
distinção acadêmica do país. Como assim? O pai e não o filho?
ATENÇÃO: A partir deste ponto,
haverá um alto grau de spoilers. Se
você os evita, volte a ler somente a partir do próximo parágrafo em itálico.
Eliezer recebeu a notícia da
própria Ministra. Ele, de seu modo discreto, avisou a família e até comemorou.
Também muito discretamente, o filho ficou contente por ver o trabalho de seu
pai enfim reconhecido, mas, opa, houve um terrível engano. O filho é chamado à
Comissão e fica sabendo que o prêmio era para ele, que a secretária errou de
Shkolnik na hora de ligar. Em atitude mais ou menos digna, o filho não aceita o
prêmio, diz que vai “matar o pai de desgosto” se aceitá-lo. Só que o presidente
do juri diz que em hipótese alguma dará o prêmio para Eliezer, com o qual tinha
antiga desavença… Numa cena patética e habilmente dirigida por Cedar, dentro de
uma pequena sala totalmente inadequada, Uriel e o presidente do juri trocam
empurrões. Todos se detestam.
Enquanto isso, em sua casa,
Eliezer dá uma entrevista a um jornal onde, instado pela repórter, acaba
desajeitadamente demonstrando seu desprezo pelo trabalho do filho, que faria
pesquisas sem nenhuma profundidade e critério. Coisinhas superficiais.
Mesmo assim, Uriel volta a se
reunir com o principal jurado e o último força um acordo.
– Certo, eu dou o prêmio a teu
pai, mas, primeiro, com a condição que você, e não a Comissão Julgadora,
escreva o texto laudatório que apresentará Eliezer como vencedor e, segundo,
que você nunca mais concorra ao Prêmio Israel, mesmo depois de minha morte.
A surpreendente condição o
deixa desesperado. A necessidade de vingar-se, de prejudicar alguém, obriga o
presidente do juri a ver Uriel desistindo de outro título, do principal deles.
E o que são os acadêmicos do gênero carreirista sem títulos? Com muita raiva,
chutando tudo o que vê pela frente, o filho aceita as condições e escreve o
texto para seu pai Eliezer. O pai, pesquisador experiente, desconfia que aquelas
palavras não são de outro que não de seu filho. Comprova o fato exercendo sua
especialidade: compara textos de Uriel, do presidente do juri e da carta
recebida e…
Fica absolutamente quieto, indo
receber o prêmio. Afinal, é uma distinção.
A partir daqui, no more
spoilers.
Não afirmo que todos os
acadêmicos tenham este comportamento, mas conheço vários casos. Ah, as viagens,
as bolsas, as negociações para assinaturas em trabalhos — tudo conta, tudo
conta! — , as escalas. Céus, que dramas! Houve tempo que em todos os sábados à
noite eu ouvia fofocas da ADUFRGS (esta sigla, a do Sindicato dos Professores
das Instituições Federais do Ensino Superior de Porto Alegre ou Associação dos
Docentes da UFRGS, causa-me calafrios). Só eu sei o tédio que passei e os absurdos
planejamentos, muitas vezes postos em prática, que ouvi. Um mundo peculiar.
Tenho a impressão que o de padres e freiras é semelhante.
O filme de Cedar acerta em
resumir grandes partes da história de Nota de Rodapé de forma gráfica e com
sons de violinos em pizzicatto. Todas aquelas relações são farsescas e eu,
sinceramente, não sei como se faz para produzir conhecimento nestes caldeirões
de ódios, vaidades e invejas. Talvez seja necessário, sei lá.
Por falar em prêmios, Nota de
Rodapé disputou e perdeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro para o iraniano A
Separação. Ambos são grandes filmes, mas Hollywood acertou ao escolher o filme
de Farhadi, com seu tema muito mais relevante. Não penso que Cedar queira matar
o diretor iraniano por causa disso. Quem faz Nota de Rodapé — melhor roteiro no
Festival de Cannes de 2011 (ufa, pensa Cedar, ao menos este eu ganhei…) — é
superior às questiúnculas vitais, importantíssimas, dos “departamentos”.
Fonte: Sul21.Milton
Ribeiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário