Retrato de Karl Marx feito com massinha pelo artista plástico Nobru |
Reportagem de Cassiano Elek
Machado publicada na Folha de S.Paulo de 22 de fevereiro de 2013.
Nos arredores de Budapeste há
um parque chamado Szoborpark, o Parque das Estátuas. Criado em 1993, este museu
ao ar livre abriga esculturas que perderam espaço na Hungria com o fim do
regime comunista.
Além de bustos de obsoletos
líderes locais, como Béla Kun, estão lá, entre estátuas de Lênin e Stálin,
diversas esculturas representando a efígie barbuda de Karl Marx.
Para muitos, nada mais
adequado. Com o fim dos regimes comunistas, as ideias do intelectual alemão
teriam virado perfeitos objetos de museu. Para outros tantos, porém, Marx
(1818-1883), o autor do “Manifesto Comunista” (obra que completou ontem 165
aninhos), está mais vivo do que nunca.
No Brasil, ao menos, as ideias
do filósofo, economista, cientista social, jornalista e historiador vivem um de
seus grandes momentos.
Prova concreta disso chega nas
próximas semanas às livrarias nacionais. A editora Boitempo, que vem lançando
todas as obras de Marx e de seu parceiro intelectual,o compatriota Friedrich
Engels (1820-1895), publica agora em março o primeiro dos três volumes de “O
Capital”, seu trabalho de mais fôlego.
Será apenas a segunda edição
integral brasileira do ensaio, lançado originalmente em 1867. Antes disso,
houve apenas uma tradução completa, feita nos anos 1960 por Reginaldo Sant’anna
(além de uma edição parcial, coordenada por Paul Singer, no início dos anos
1980).
Em conjunto ao lançamento da
nova edição de “O Capital”, a Boitempo e o Sesc-SP promovem, a partir de março,
um ciclo de palestras e debates sobre Marx que se estenderá até maio.
“Marx – A Criação Destruidora”
(veja programação completa acima) terá a participação de mais de 20
intelectuais de diversas áreas do conhecimento, incluindo convidados
internacionais de renome, como o filósofo esloveno Slavoj iek, o geógrafo
britânico David Harvey, que lançará, na ocasião, o livro “Para entender ‘O
Capital’”, e o cientista político alemão Michael Heinrich.
O CIENTISTA POLÍTICO
Heinrich tinha 14 anos quando
começou a ler Karl Marx, ainda no colégio. Hoje, aos 55, trabalha no MEGA,
codinome do projeto alemão Marx-Engels-Gesamtausgabe, que vem reestabelecendo
os textos e publicando em edições críticas todas as linhas já escritas pela
dupla.
O professor, que virá ao país
para uma palestra em 22 de março intitulada “Os Manuscritos de Karl Marx e
Friedrich Engels”, é autor de um popular livro de apresentação chamado “Uma
Introdução aos Três Volumes de ‘O Capital” (sem edição brasileira).
A menção aos “três volumes” no
título de seu livro não é casual. Quais seriam as suas sugestões para entender
bem o intrincado “O Capital”?, lhe questiona a Folha.
“Vou resumir todas minhas dicas
em uma só”, responde. “Leia ‘O Capital’ na íntegra.”
Heinrich, que vem trabalhando
em perspectiva não ortodoxa marxista (o próprio Marx se disse “não marxista” em
carta para o genro Paul Lafargue, lembra ele) para recuperar o legado
intelectual do autor, diz que certos livros de introdução desvirtuam os objetivos
da obra.
“As três partes do livro formam
uma unidade. Se você ler apenas o primeiro volume terá uma visão não só
incompleta, como errada. O sentido integral, mesmo de categorias como valor e
mercadoria, só se revela com o final do livro”, afirma.
É preciso, diz ele, questionar
o que Marx tenta analisar de fato. “Não era o capitalismo inglês nem o
capitalismo do século 19, mas sim a organização interna do modo de produção
capitalista, em seu ideal médio, como Marx resume no final do volume 3.”
Nessa perspectiva, sustenta
ele, a leitura do livro hoje faria muito mais sentido (e a Folha perguntou a
importantes intelectuais brasileiros “por que ler Marx hoje”). “Grande parte da
análise que ele faz do capitalismo se aplica muito mais ao que aconteceu no século
20 e no 21 do que ao tempo dele.”
Heinrich diz que um dos grandes
enigmas para ele “é entender como o trabalho de um homem que devotou a maior
parte da vida à análise do capitalismo e fez pontuais notas sobre a sociedade
capitalista é considerado o responsável por um modelo social extremamente
autoritário chamado ‘socialismo’”.
Testemunha da queda do Muro de
Berlim, em 1989, ele assistiu o interesse por Marx na Alemanha desabar, até
ganhar empuxo novamente no final dos anos 1990.
Ele defende o projeto no qual
trabalha, o MEGA (também chamado de MEGA-2, para se diferenciar de iniciativa
semelhante dos anos 1920) por difundir uma visão mais científica de Marx.
O TRADUTOR
É com perspectiva condizente ao
discurso de Heinrich que Rubens Enderle encarou a escalada do Everest que é a
tradução de “O Capital”.
Já responsável, sozinho ou em
parcerias, por traduções de importantes trabalhos de Marx para a Boitempo, como
“A Ideologia Alemã” e “A Guerra Civil na França”, ele atuou durante dois anos
no Marx-Engels-Institut da Academia de Ciências de Berlim-Brandemburgo,
responsável pelo projeto MEGA.
Apesar de estar embebido em
Karl Marx há muitas primaveras, Enderle, 38, diz que “não é marxista, mas sim
um marxólogo”, diz o tradutor gaúcho-mineiro-alemão.
“Isso influenciou o trabalho de
tradução, pois minha preocupação como tradutor é permanecer o mais fiel
possível aos textos, o que, no caso de Marx, implica se desvencilhar de chavões
e vulgaridades ideológicas que se acumularam sobre sua obra ao longo de séculos.”
Enderle, atualmente vivendo em
Munique, ainda não chegou ao topo da montanha. Ele está trabalhando no livro
2, que deve ser lançado no ano que vem.
Além das dificuldades
tradicionais da tradução do alemão (“falta ao português palavras como ‘coisal’
ou ‘coisalmente’”), ele sublinha outras dificuldades técnicas específicas: “Há
passagens em que Marx entra em detalhes sobre peças mecânicas, principalmente
de relojoaria”. Um dicionário alemão de relojoaria foi de grande ajuda.
Segundo ele, o fato de a atual
tradução ser a primeira baseada na edição MEGA trará mais diferenciais nos
volumes 2 e 3 da obra, publicadas depois da morte de Marx.
Ivana Jinkings, diretora
editorial da Boitempo, que tem extenso catálogo de marxistas, já publicou 15
obras de Marx e Engels (o campeão de vendas é “O Manifesto Comunista”, com 15
mil exemplares), diz que o volume 3 será lançado em 2015. Curadora de diversos
seminários sobre Marx, incluindo o atual, ela espera bater o recorde de público
desta vez. “Esperamos mais de 15 mil pessoas.”
Intelectuais brasileiros explicam por que ainda é importante ler Marx
Questionados pela Folha, quatro
intelectuais brasileiros explicam as razões pelas quais os escritos do filósofo
alemão Karl Marx são importantes até os dias de hoje e, por isso, ainda merecem
leitura.
ROBERTO SCHWARZ, crítico
literário
“Como percepção da sociedade
moderna, não há nada que se compare a ‘O Capital’, ao ‘Manifesto Comunista’ e
aos escritos sobre a luta de classes na França. A potência da formulação e da
análise até hoje deixa boquiaberto. Dito isso, os prognósticos de Marx sobre a
revolução operária não se realizaram, o que obriga a uma leitura distanciada. Outros
aspectos da teoria, entretanto, ficaram de pé, mais atuais do que nunca, tais
como a mercantilização da existência, a crise geral sempre pendente e a
exploração do trabalho. Nossa vida intelectual seria bem mais relevante se não
fechássemos os olhos para esse lado das coisas.”
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI,
filósofo:
“Os textos de Marx, notadamente
‘O Capital’, fazem parte do patrimônio da humanidade. Como todos os textos,
estão sujeitos às modas, que, hoje em dia, se sucedem numa velocidade
assombrosa. Depois da queda do Muro de Berlim, o marxismo saiu de moda, pois
ficava provada de vez a inviabilidade de uma economia exclusivamente regida por
um comitê central ‘obedecendo a regras racionais’, sem as informações advindas
do mercado. Mas a crise por que estamos passando recoloca a questão da
especificidade do modo de produção capitalista, em particular a maneira pela
qual esse sistema integra o trabalho na economia. O desemprego é uma questão
crucial. As novas tecnologias tendem a suprir empregos. Na outra ponta, o
dinheiro como capital, isto é, riqueza que parece produzir lucros por si mesma,
chega à aberração quando o capital financeiro se desloca do funcionamento da
economia e opera como se a comandasse. A crise atual nos obriga a reler os
pensadores da crise. Como cumprir essa tarefa? Alguns simplesmente voltam a
Marx como se nesses 150 anos nada de novo tivesse acontecido. Outros alinhavam
as modas em curso com os textos de Marx, apimentados com conceitos do idealismo
alemão, da psicanálise, da fenomenologia heideggeriana. Creio que a melhor
coisa a fazer é reler os textos com cuidado, procurando seus pressupostos e
sempre lembrando que a obra de Marx ficou inacabada e sua concepção de
história, adulterada, por ter sido colada, sem os cuidados necessários, a um
darwinismo respingado de religiosidade.”
DELFIM NETTO, economista
“Porque Marx não é moda. É
eterno!”
LEANDRO KONDER, filósofo:
“Os grandes pensadores são
grandes porque abordam problemas vastíssimos e o fazem com muita originalidade.
A perspectiva burguesa, conservadora, evita discuti-los. E é isso o que
caracteriza seu conservadorismo. Marx é o autor mais incômodo que surgiu até
hoje na filosofia. Conceitos como materialismo histórico, ideologia, alienação,
comunismo e outros são imprescindíveis ao avanço do conhecimento crítico. Por
isso, mais do que nunca é preciso frequentá-los.”
Fonte: Boitempo Editorial e Folha
de S.Paulo
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