Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há
séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes
imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo
sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem
sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na
vida
Com este mal-estar a fazer-me
pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse
deveras!
Mas não: é este estar-entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
Um internado num manicômio é,
ao menos, alguém,
Eu sou um internado num
manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a
todos:
Estou dormindo desperto com
sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...
Pobre velha casa da minha
infância perdida!
Quem te diria que eu me
desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está
maluco.
Que é de quem dormia sossegado
sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco.
Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma
religião qualquer!
Por exemplo, por aquele
manipanso
Que havia em casa, lá nessa,
trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de
tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num
manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que
pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro
pintado!
- Álvaro de Campos [Heterônimo
de Fernando Pessoa], (escrito em 16.06.1934), In Poesia, Assírio e Alvim, ed.
Teresa Rita Lopes, 2002.
Um comentário:
Também estou nesse poema, e estou fora...
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