Quem é a mulher que aborta?
A mulher que aborta pode estar sentada ao seu lado no
ônibus. Ela pode ser sua mãe, sua esposa, sua irmã, ou a colega da faculdade.
De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto feita pela Universidade de Brasília
em 2010, a mulher que aborta é casada, tem filhos, religião, pertence a todas
as classes sociais e costuma carregar sozinha o peso de sua decisão. Tratada
pela lei como uma criminosa, sempre foi apontada pela moral e pelos bons
costumes como uma mulher desonrada e sem sentimentos. Uma pária. Porém, essa
mulher está muito mais próxima de você e de mim. De acordo com a pesquisa, uma
em cada sete brasileiras entre 18 e 39 anos já realizou ao menos um aborto na
vida, o equivalente a uma multidão de 5 milhões de mulheres. Elas merecem ir
para a cadeia? Criminalizar o aborto resolve? Vai pensando aí.
Keila Rodrigues é uma dessas mulheres. Alega ser usuária de
drogas e mãe de duas crianças criadas pela avó. Ontem, foi noticiado que o
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reformou a sentença da Justiça de
Rio Preto e determinou que a ré Keila Rodrigues seja julgada pelo Tribunal do
Júri pelo crime de aborto, cuja pena varia de um a três anos de reclusão.
A hipocrisia da desigualdade
Num país em que o aborto é ilegal, Keila procurou o auxílio
de uma colega para interromper uma gravidez indesejada. Tomou a decisão de
colocar sua vida em risco, porque sabia que essa gravidez não lhe faria bem,
nem a ela e nem ao bebê. O médico ginecologista Daniel Jarreta Coelho poderia
ter alegado sigilo médico, mas confirmou o atendimento da ré em trabalho de
parto, e que ela relatou a utilização de dois comprimidos do medicamento
abortivo.
No Brasil, a gravidez é compulsória. O aborto é permitido em
casos de fetos anencéfalos, risco de vida para gestante e estupro. Fora isso,
todos os anos várias mulheres são obrigadas a levar adiante uma gravidez que
não as faz feliz e que gera diversas consequências físicas e psicológicas.
Minto. Apenas as mulheres pobres são obrigadas a isso. Especialmente as negras.
Keila não tem advogado. Apenas quando a data do juri for
marcada pela Justiça um defensor dativo será nomeado. As mulheres pobres,
negras e jovens, do campo e da periferia das cidades, são as que mais sofrem
com a criminalização. São estas que recorrem a clínicas clandestinas e a outros
meios precários e inseguros, uma vez que não podem pagar pelo serviço
clandestino na rede privada, que cobra altíssimos preços, nem podem viajar a
países onde o aborto é legalizado.
A maior hipocrisia que existe no Brasil em relação ao aborto
é o fato de que mulheres que tem dinheiro podem realizar o procedimento com
segurança e apoio. Argentina e Uruguai estão com propostas de legalização do
aborto em seus órgãos legislativos. Se uma delas for aprovada, a salvação de várias
brasileiras poderá estar em uma promoção de passagem aérea. Clínicas
clandestinas brasileiras perderão muito dinheiro com isso. Quem ganha com a
criminalização do aborto? A criminalização não evita o aborto, apenas força as
mulheres a realizá-lo na clandestinidade. Uma mulher que decide colocar sua
vida em risco, por meio de um procedimento abortivo inseguro, tem muita certeza
de que não quer estar grávida, muito menos passar nove meses gestando.
Num país em que o aborto é ilegal e mata milhares de mulheres
todos os anos em procedimentos inseguros, Keila foi absolvida de maneira
sumária pela Justiça de Rio Preto. Porém, o Ministério Público e o Tribunal de
Justiça de São Paulo decidiram discordar dessa decisão, porque Keila não
comprovou, de modo cabal, a necessidade de tirar a vida do feto que trazia no
ventre. A vida de um feto em formação vale mais que a vida de uma mulher adulta
chamada Keila Rodrigues? Acredito que não.
Todos somos a favor da vida humana, mas sabemos que há uma
grande diferença entre uma vida em potencial e a vida de uma pessoa adulta. O
valor da vida não está acima de qualquer circunstância. Como Keila pode confiar
na justiça humana se não confiam nas suas decisões sobre sua vida e seu corpo?
Como a vida de um feto pode estar acima da vida de uma mulher adulta, se o feto
só existe por causa do corpo de Keila? Os abortos acontecem e acontecerão, com
ou sem a criminalização, pois nenhuma lei conseguirá constranger uma mulher a
ter um filho contra sua vontade.
Legalização do aborto e políticas públicas
Quando o aborto não é legalizado milhares de mulheres
colocam suas vidas em risco porque sabem que não terão uma gravidez, mas sim um
calvário. Alguns alegam que são apenas nove meses. Tente passar nove meses
grávido. Pegue ônibus lotados com pés inchados, hormônios enlouquecidos e uma
barriga alterando seu equilíbrio. Após o parto, lide com as dores nos seios que
empedram devido ao leite. Encare as consequências psicológicas de uma gravidez
indesejada, sem afeto e alegria.
Muitas pessoas argumentam que a mulher não pode abortar
porque deve assumir a responsabilidade por ter feito sexo. Porém, é uma grande
responsabilidade assumir para si mesma que, nesse momento, ela não quer ter um
filho. Assumir a incapacidade de gestar, amar e cuidar de uma criança é uma
decisão importantíssima. Quantas mulheres abortaram e depois tiveram filhos, os
quais puderam dar atenção e carinho porque estavam em outro momento.
Aqui reside uma questão fundamental: mulheres que tem
certeza de sua decisão ao fazer um aborto, tem menos chances de carregar
ressentimentos ou traumas. Uma decisão consciente acarreta consequências,
quando estamos cientes e temos apoio sabemos lidar com elas. Quantas mulheres
pensaram em abortar, desistiram e hoje são mães felizes. Há várias, e é ótimo que
não tenham tomado uma atitude da qual não estavam seguras.
Legalizar o aborto significa dar as mulheres a opção clara
de uma escolha segura. Não ter que se preocupar em ser presa e ir à júri
popular ajuda muito nesses momentos. Com opções seguras, gratuitas e
acessíveis, as mulheres podem refletir sobre o que desejam para suas vidas.
Legalizar o aborto também significa promover melhores
políticas públicas de prevenção da gravidez indesejada. Os números de abortos
que temos atualmente no Brasil são questionáveis, porque são baseados na
quantidade de curetagens realizadas por hospitais. Sabemos que muitas mulheres
abortam no Brasil, porque essa é uma situação cotidiana, desde as garrafadas de
ervas vendidas nas feiras populares, passando pela venda ilegal de medicamentos
no mercado negro, até procedimentos que não entram nos prontuários de clínicas
respeitadas das grandes capitais. Onde há mulheres, há abortos, porque até
médicas ginecologistas engravidam sem desejar. Com a legalização do aborto é
possível diminuir o número de abortos, porque a questão vai deixar de ser um
tabu e os órgãos de saúde terão informações plenas sobre a situação do aborto
no país.
A partir da legalização do aborto é possível ter números
reais, além de saber as razões pelas quais as mulheres abortam. Por meio desses
dados, pode-se descobrir problemas pontuais em locais ou grupos específicos,
que estejam fazendo com que muitas mulheres optem pelo aborto como: falhas na
distribuição de métodos contraceptivos, pouca informação sobre prevenção,
atendimento precário nas unidades de saúde, desemprego, enfraquecimento da
economia, idade, carência de iniciativas educacionais e assistenciais do poder
público para auxiliar gestantes, exiguidade de perspectivas futuras, entre
outros. Acredito que qualquer proposta séria de legalização do aborto feita
atualmente tem como principais pilares: a educação sexual, o planejamento
familiar e a distribuição gratuita de métodos contraceptivos. O aborto legal é
para não morrer. Porque não somos máquinas, somos humanos e toda prevenção pode
falhar.
Gravidez não pode ser punição
As mulheres não devem ser obrigadas a serem mães, muito
menos punidas por fazerem sexo por prazer. Há quem diz: “abriu as pernas para
dar, mas não quer abrir as pernas para parir”. Gravidez não pode ser punição
para a mulher que faz sexo.
Não importa se a maioria do país é contra ou a favor do
aborto, não somos uma maiocracia. A questão principal é: há mulheres morrendo
em decorrência de abortos inseguros e nenhuma mulher deve morrer por isso.
Assim como nenhuma mulher deve ser presa por isso. A gravidez é algo que diz
respeito a a vida e ao corpo de quem tem um útero. E antes que alguém venha
dizer que a mulher não fez o filho sozinha e que o homem também tem que
decidir, aviso logo: enquanto não for possível para um feto viver fora de um
útero, você não poderá obrigar ninguém a ser uma chocadeira apenas porque quer
um filho.
Keila Rodrigues é uma mulher que aborta e que está sentindo
a ira de uma sociedade que vira as costas para mulheres pobres como ela. Muitos
dizem: “a minha filha fez um aborto, mas ela é limpinha e inteligente, essas
faveladas aí vão fazer toda semana”. A criminalização só existe para quem não
está no topo da pirâmide social. A criminalização só beneficia quem quer a
morte das mulheres.
Precisamos reestabelecer amplamente o debate do aborto no
Brasil. Não como uma chantagem, como vem fazendo os setores religiosos e
conservadores do legislativo brasileiro, mas como uma questão de saúde pública
e de respeito pela plenitude dos direitos reprodutivos das mulheres dentro de
um estado laico. Pelo direito de não ser um útero a disposição da sociedade,
mas de ser uma pessoa plena, com liberdade de ser, pensar e escolher.
Fonte: Blogueiras Feministas
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