Henrique Carneiro
Por racismoambiental, 13/02/2013
A renúncia do Papa é apresentada como uma decisão pessoal,
devido à idade. Evidentemente, é preciso buscar as razões de fundo para um
gesto inédito nos anais recentes da Igreja e que enfraquece ainda mais a sua
credibilidade.
Os pontificados ficam
historicamente identificados com alguns dos fatos ou decisões mais importantes
que marcaram esses períodos. O Papa Pio XII, contemporâneo do nazismo e aliado
de Hitler na sua ascensão ao poder, ficou indelevelmente marcado por essa
aliança. Mais no passado, o que resta na memória popular de Papas como Rodrigo
Borgia, ou Alexandre VI, senão a reputação cruel e devasso, que nomeou o
próprio filho Cesare Borgia, além de muitos outros parentes, como cardeais? De
Júlio III, a nomeação como cardeal-sobrinho do amante de 17 anos, Innocenzo.
De Joseph Ratzinger, o Bento
XVI, o elemento mais marcante de seu pontificado, antes da renúncia, parecia
que iria ser a denúncia pública da pedofilia no clero. Poderá essa renúncia
tirar o foco desse problema e sua sucessão lançar uma cortina de fumaça que
oculte a série de escândalos?
Trago nestes breves
comentários, de alguém que não é um vaticanólogo, apenas algumas evidências
disponíveis para qualquer leitor de jornais de que essa renúncia não é um raio
em céu claro. Que evidências são essas?
As de que o Vaticano viveu no
pontificado de Bento XVI uma crise já antiga de perda de influência social e
política, agravada pela perda da credibilidade moral com os escândalos de
pedofilia. Mas ao se tratar dessa instituição, não se deve esquecer que ela é,
do ponto de vista financeiro, uma das maiores multinacionais do planeta, com
investimentos em bancos, corporações, reservas de ouro, etc. (MANHATTAN, 1983
mostrou a dimensão dessa fortuna).
No ano passado, a Igreja
Católica viveu outra crise com as revelações de corrupção e negociatas feitas a
partir dos documentos vazados pelo mordomo do Papa, no que ficou conhecido como
Vatileaks. Dessa vez, a culpa não era do mordomo, que foi preso, processado,
condenado e depois perdoado.
O Banco do Vaticano (o “banco
mais secreto do mundo” como diz a revista Forbes (JORISH, 2012) é o IOR
(Instituto das Obras da Religião), fundado em 1942. Nesse período o Vaticano
vinha de uma colaboração com o regime nazista, por parte de Pio XII, mas, ainda
antes disso, de uma colaboração mais estreita com Mussolini, que concedeu ao
Vaticano em 1929 a assinatura do Tratado de Latrão com o estado italiano.
Esse tratado, também conhecido
como Concordata foi o que permitiu o reconhecimento do Vaticano como um Estado
dentro de outro Estado, incluindo a gestão das próprias finanças e a manutenção
da influência política sobre a Itália que ficava com o catolicismo como
religião oficial, o ensino confessional nas escolas públicas e outras vantagens
ao clero. Só em 1978, houve uma alteração que tornou a Itália uma República
laica e o divórcio foi aprovado.
Rompendo o isolamento em que o
Vaticano havia ficado desde a vitória da república italiana em 1870, Mussolini
concedeu também vultosas indenizações à Igreja. Parte desse dinheiro foi
aplicado em Londres em aquisições imobiliárias que hoje alcançam o valor de
cerca de meio bilhão de libras esterlinas, embora o valor real permaneça
secreto, apesar das denúncias recentes do jornal Guardian (LEIGH; TANDA;
BENHAMOU, 2013).
Os interesses econômicos do
Vaticano também estão sendo afetados pela crise global, o que levou inclusive
que em 2012 ocorresse o maior déficit fiscal em muitos anos no Vaticano, de
cerca de 19 milhões de dólares (VATICAN, 2013). Nessa crise também incide o
custo financeiro com os processos por pedofilia.
Os escândalos de pedofilia,
além do custo moral, têm um preço econômico com os processos e indenizações,
que só nos EUA, chegaram a três bilhões de dólares em mais de três mil
processos abertos, com 3.700 clérigos denunciados, 525 presos, a maioria dos quais
condenados e cumprindo penas.
Desde os anos de 1950 até hoje
cerca de seis mil sacerdotes já foram denunciados nos Estados Unidos por abusos
sexuais contra crianças, o que equivale a 5,6% do total do clero estadunidense
(SCHAFFER, 2012). Figuras de proa da Igreja, como o líder dos Legionários de
Cristo, no México, Marcial Maciel forma denunciados por pedofilia e outros
abusos.
Bento XVI protegeu setores
diretamente nazistas do clero, como o bispo Richard Williamson, negacionista do
Holocausto que havia sido excomungado por João Paulo II, e cuja excomunhão foi
revogada por Bento XVI em 2009. Apesar disso e de ter atendido aos interesses
de setores ultraconservadores da Opus Dei e do Caminho Neocatecumenal, cerrando
fileiras com partidos como o PP na Espanha para impor os planos de austeridade
e flertando com a extrema-direita europeia, Bento XVI teria desagradado a esses
setores ao tentar reconhecer parte dos escândalos de pedofilia para buscar
limpar a reputação da Igreja. Isso levou um colunista de El País a avaliar que
a renúncia foi resultado da pressão desses setores ultraintegristas (MORA,
2013).
Seja por causa das acusações de
corrupção ou de pedofilia, a renúncia acrescenta uma nota ainda mais decadente
a um Papa que dedicou seu pontificado a um apostolado de intolerância e
repressão contra homossexuais, mulheres, muçulmanos e movimentos sociais. Num
momento de crescimento da extrema direita católica na sua faceta mais fascista,
como o caso do terrorista católico norueguês Breivik, o Papado de Ratzinger foi
um ponto de apoio para a homofobia, o racismo, o sexismo, a intolerância e a
perda de direitos sociais dos trabalhadores.
É provável que se jogue com a
carta de Il Gattopardo, de Lampedusa, “mudar para tudo continuar igual”, mas
para isso, os recursos da inteligência publicitária da Igreja podem contar com
novidades, como o primeiro Papa não europeu da história, o que não deixará de
manifestar mais uma vez um dos sintomas maiores da crise global do catolicismo,
sua condição essencialmente branca e ocidental. Um Papa negro ou
latino-americano não conseguirá alterar esse fato: a Ásia e a África permanecem
imunes à religião imperial que o sistema de estados europeu trouxe em sua
colonização global.
A participação do Vaticano nos
interesses globais do capitalismo também não deve deixar a Igreja imune à onda
de revolta anticapitalista que cresce especialmente nas duas margens do
Mediterrâneo.
A recente aprovação pela Câmara
Baixa do Parlamento francês da união matrimonial homossexual é só mais um sintoma
de que os interesses patriarcais, misóginos e machistas do clero também estão
perdendo lugar na definição da ordem legal e do quadro dos direitos civis do
século XXI.
A última monarquia absolutista
europeia, o Vaticano, sofre no gesto de renúncia daquele que foi consagrado
como o “vigário de Cristo”, ou seja, o seu substituto, uma derrota simbólica
profunda, pois demonstra falta de coragem e obstinação em carregar uma cruz até
o final. A convivência de um novo Papa com o ex-Papa também esvazia a mística
monárquica individual desse vicariato místico, dividindo em dois o corpo do
substituto de Cristo na Terra.
Referências
JORISCH, Avi. The Vatican Bank: The Most Secret Bank
In the World. Forbes, 26 jun. 2012. Disponível em:http://www.forbes.com/sites/realspin/2012/06/26/the-vatican-bank-the-most-secret-bank-in-the-world/
LEIGH, David; TANDA, Jean
François; BENHAMOU, Jessica. How the
Vatican built a secret property empire using Mussolini’s millions. The
Guardian, Monday 21 January 2013. Disponível
em:http://www.guardian.co.uk/world/2013/jan/21/vatican-secret-property-empire-mussolini?INTCMP=SRCH
MANHATTAN, Avro. The Vatican Billions. Chino, CA:
Chick Publications Year: 1983.
MORA, Miguel. Los movimientos ultracatólicos ganan la
partida. El País, 1º Feb. 2013. Disponível
em:http://internacional.elpais.com/internacional/2013/02/11/actualidad/1360588257_314838.html
SCHAFFER, Michael D.. Sex-abuse crisis is a watershed in the Roman Catholic
Church’s history in America. Phylly.com, 25 Jun. 2012. Disponível
em:http://articles.philly.com/2012-06-25/news/32394491_1_canon-lawyer-catholic-priests-catholic-bishops
VATICAN posts record-high budget deficit: $19M. CBSNews,
5 Jul. 2012. Disponível
em:http://www.cbsnews.com/8301-202_162-57466929/vatican-posts-record-high-budget-deficit-$19m/
Compartilhada por Gleice
Oliveira Guarani-Kaiowá.
Fonte: Convergência
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