O cara radical em suas ideias contra o domínio dos EUA estampa tênis All Star
Por Miguel Rios
Publicado em 30.11.2012
Nada podia estar mais afastado
um do outro do que Che Guevara e jingle bells. Água e óleo. Daí, o capitalismo
olha pela janela e provoca: “Tão duvidando de mim?” Se duvidaram ninguém sabe,
já que ninguém respondeu, ninguém nem ligou, ninguém nem ouviu, pois o mundo
corporativo não costuma criar, divulgar projetos, nem desafiar às claras. Faz
na entoca, aos sussurros, em mensagens subliminares. Quando se vê já foi, já
comeu de coco, já embrulhou para presente.
E quando se viu, se deu conta
de Che, ele já havia ido, meio que comido de coco, já com laço de fita.
O cara que viveu nas selvas, em
guerrilhas, sobrevivendo do que achava, agora frequenta as araras da C&A. O
cara radical em suas ideias contra o domínio dos EUA agora estampa tênis All
Star. O cara do esquerdismo sanguíneo, voraz, agora desfila em um biquíni usado
por Gisele Bundchen.
Che é presente de Natal,
chique, fashion, descolado, ideal para quem ama contestar por modinha, tangido
como ovelha nos protestos.
Não havia cabeça lá pelos anos
1960 e 70 que pudesse imaginar tal mistura. Não havia integrante de passeata
que carregasse o rosto dele na faixa que pensasse que ele seria usado a favor
do consumo.
O cara que para o esquerdista
ferrenho é o herói justiceiro, que para o direitista voraz é o assassino
sanguinário, para o empresário sagaz é dinheiro entrando na caixa registradora.
Para o movimento, não perdeu o
elã, não é traidor. Traíram com ele. Che, 45 anos após sua morte, no último 9
de outubro, é o mesmo. Radical. Severo. Estoico. Firme em sua meta.
Um dos poucos homens que nunca
se entregou, nunca saiu do prumo que traçou, nunca descansou da luta. Um dos
poucos homens que matou e morreu pelo que acreditava, se recusou a sentar na
cadeira acolchoada do poder conquistado e nela se entrevar, se corromper. Mas
um dos muitos homens que menosprezou a astúcia do inimigo.
O inimigo é matreiro e duro na
queda. Como Che, ele não descansa, nem se rende. Pôs a mente para pensar.
“Estão adorando este cara. Se estão adorando este cara, vão querer mostrar. Se
vão querer mostrar, vão comprar. Se vão comprar, é lucro.”
Não deu outra. Che virou
produto. Primeiro vieram umas camisetas inocentes, com a clássica foto de
Alberto Korda, vendidas em portas de faculdade, silk screen caseiro, de malha
que esgarça e desbota na primeira lavagem. Vieram os pôsteres com o “Hay que endurecerse, pero
sin perder la ternura jamás”. Quem não os tivesse era indigno de ser
intelectual, de pisar no solo universitário.
O rosto do cabeludo de barba
sob uma boina foi se espalhando, contagiando. Verdadeira chelatria. E a
adoração vermelha, ideológica, passou à adoração fashionista, iconoclasta.
Nem é problema a foto ter
virado bem de consumo. Ninguém precisa ter lido O Capital para vestir símbolos
comunistas. Use e abuse. Desde que os use sem qualquer pretensão além de adorno
cult, sem querer bancar o politicamente insubordinado, só para impressionar,
pagar de “sou tão consciente”.
Cherizados de shopping hoje
sabem quase nada de Che. No máximo que era argentino, que brigou pela
libertação de Cuba dos EUA, que era o rapaz que ninguém dizia o nome,
interpretado por Antonio Banderas, cantando e dançando ao lado de Madonna em
Evita.
Talvez nem saibam que morreu na
Bolívia, que discursou na ONU contra o imperialismo ianque. Nem que Ernesto
Rafael era seu nome de batismo e certidão. Mas sabem que sua imagem produz aura
de rebeldia em quem a usa. Algo de contestador, de desobediência às normas.
Che pegou outro caminho. Che se
usa porque dá prestígio. Che se usa porque é grife. Como Diesel ou Cavalera.
São Jorge e Jesus Cristo. Mickey Mouse e Kurt Cobain.
O que eles não sabem, talvez
suspeitem e pouco se importem, é que o capitalismo os enredou. Desafiaram o
dragão e ele passou na cara: “Nunca me desafiem”. Espalham a sutil ideologia de
que tudo é vendável, iludidos pela figura comunista.
O capitalismo tem crises, leva
golpes, mas se adapta. É questionado, desmascarado, mas dá reviravoltas. Engole
e digere adversários. Envolve, se
reinventa. Sobrevive.
Conhece o seu gado. Sabe quem
os humanos são porque é deles que se nutre, foi por eles parido, por eles foi
acalentado. Conhece as fraquezas e as utiliza. No caso, a vaidade e a carência.
A necessidade de posar, de se destacar.
O capitalismo se pôs a matutar:
“Che é ídolo. Ídolos soam descolados nos grupos, alimentam o ego, trazem a
sensação de se inserir, demonstrar quem você é e como você é maneiro”. Bingo!
Venderam Che, o jogaram em uma linha de montagem, com etiqueta em código de
barras, daí direto para as prateleiras, pronto para ser adquirido por qualquer
revolucionário de butique.
Aí o carinha moderno vai na
loja, escolhe, prova, aprova, passa o cartão de crédito, divide em seis vezes
sem juros, põe na sacola, chega em casa, veste, sai na rua, vai beber cerveja
na calçada do bar, olhar questionador, de indomesticável, de contra o sistema.
Poser perfeito. Hipster/mainstream com maquiagem underground.
Fonte: Uol.
NE10
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