Pesquisar este blog

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Che, um bom presente capitalista


O cara radical em suas ideias contra o domínio dos EUA estampa tênis All Star

Por Miguel Rios
Publicado em 30.11.2012

Nada podia estar mais afastado um do outro do que Che Guevara e jingle bells. Água e óleo. Daí, o capitalismo olha pela janela e provoca: “Tão duvidando de mim?” Se duvidaram ninguém sabe, já que ninguém respondeu, ninguém nem ligou, ninguém nem ouviu, pois o mundo corporativo não costuma criar, divulgar projetos, nem desafiar às claras. Faz na entoca, aos sussurros, em mensagens subliminares. Quando se vê já foi, já comeu de coco, já embrulhou para presente.
E quando se viu, se deu conta de Che, ele já havia ido, meio que comido de coco, já com laço de fita.
O cara que viveu nas selvas, em guerrilhas, sobrevivendo do que achava, agora frequenta as araras da C&A. O cara radical em suas ideias contra o domínio dos EUA agora estampa tênis All Star. O cara do esquerdismo sanguíneo, voraz, agora desfila em um biquíni usado por Gisele Bundchen.
Che é presente de Natal, chique, fashion, descolado, ideal para quem ama contestar por modinha, tangido como ovelha nos protestos.
Não havia cabeça lá pelos anos 1960 e 70 que pudesse imaginar tal mistura. Não havia integrante de passeata que carregasse o rosto dele na faixa que pensasse que ele seria usado a favor do consumo.
O cara que para o esquerdista ferrenho é o herói justiceiro, que para o direitista voraz é o assassino sanguinário, para o empresário sagaz é dinheiro entrando na caixa registradora.
Para o movimento, não perdeu o elã, não é traidor. Traíram com ele. Che, 45 anos após sua morte, no último 9 de outubro, é o mesmo. Radical. Severo. Estoico. Firme em sua meta.
Um dos poucos homens que nunca se entregou, nunca saiu do prumo que traçou, nunca descansou da luta. Um dos poucos homens que matou e morreu pelo que acreditava, se recusou a sentar na cadeira acolchoada do poder conquistado e nela se entrevar, se corromper. Mas um dos muitos homens que menosprezou a astúcia do inimigo.
O inimigo é matreiro e duro na queda. Como Che, ele não descansa, nem se rende. Pôs a mente para pensar. “Estão adorando este cara. Se estão adorando este cara, vão querer mostrar. Se vão querer mostrar, vão comprar. Se vão comprar, é lucro.”
Não deu outra. Che virou produto. Primeiro vieram umas camisetas inocentes, com a clássica foto de Alberto Korda, vendidas em portas de faculdade, silk screen caseiro, de malha que esgarça e desbota na primeira lavagem. Vieram os pôsteres com o “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. Quem não os tivesse era indigno de ser intelectual, de pisar no solo universitário.
O rosto do cabeludo de barba sob uma boina foi se espalhando, contagiando. Verdadeira chelatria. E a adoração vermelha, ideológica, passou à adoração fashionista, iconoclasta.
Nem é problema a foto ter virado bem de consumo. Ninguém precisa ter lido O Capital para vestir símbolos comunistas. Use e abuse. Desde que os use sem qualquer pretensão além de adorno cult, sem querer bancar o politicamente insubordinado, só para impressionar, pagar de “sou tão consciente”.
Cherizados de shopping hoje sabem quase nada de Che. No máximo que era argentino, que brigou pela libertação de Cuba dos EUA, que era o rapaz que ninguém dizia o nome, interpretado por Antonio Banderas, cantando e dançando ao lado de Madonna em Evita.
Talvez nem saibam que morreu na Bolívia, que discursou na ONU contra o imperialismo ianque. Nem que Ernesto Rafael era seu nome de batismo e certidão. Mas sabem que sua imagem produz aura de rebeldia em quem a usa. Algo de contestador, de desobediência às normas.

Che pegou outro caminho. Che se usa porque dá prestígio. Che se usa porque é grife. Como Diesel ou Cavalera. São Jorge e Jesus Cristo. Mickey Mouse e Kurt Cobain.
O que eles não sabem, talvez suspeitem e pouco se importem, é que o capitalismo os enredou. Desafiaram o dragão e ele passou na cara: “Nunca me desafiem”. Espalham a sutil ideologia de que tudo é vendável, iludidos pela figura comunista.
O capitalismo tem crises, leva golpes, mas se adapta. É questionado, desmascarado, mas dá reviravoltas. Engole e digere  adversários. Envolve, se reinventa. Sobrevive.
Conhece o seu gado. Sabe quem os humanos são porque é deles que se nutre, foi por eles parido, por eles foi acalentado. Conhece as fraquezas e as utiliza. No caso, a vaidade e a carência. A necessidade de posar, de se destacar.
O capitalismo se pôs a matutar: “Che é ídolo. Ídolos soam descolados nos grupos, alimentam o ego, trazem a sensação de se inserir, demonstrar quem você é e como você é maneiro”. Bingo! Venderam Che, o jogaram em uma linha de montagem, com etiqueta em código de barras, daí direto para as prateleiras, pronto para ser adquirido por qualquer revolucionário de butique.
Aí o carinha moderno vai na loja, escolhe, prova, aprova, passa o cartão de crédito, divide em seis vezes sem juros, põe na sacola, chega em casa, veste, sai na rua, vai beber cerveja na calçada do bar, olhar questionador, de indomesticável, de contra o sistema. Poser perfeito. Hipster/mainstream com maquiagem underground.
Fonte:  Uol. NE10

Nenhum comentário: