Há algo comum entre “Argo” e “A hora mais escura”, candidatos ao
Oscar. Ambos veem muçulmanos apenas como caricatura ideologizada
Por José Gerado Couto*
22/02/2013
Quis o destino – ou a mão
invisível do mercado cinematográfico – que dois fortes concorrentes ao Oscar
deste ano fossem filmes que podem ser englobados no tema geral da “guerra ao
terror”, mais precisamente da hostilidade recíproca entre norte-americanos e
muçulmanos “radicais”, a guerra nada fria de nossa época.
Ambos são centrados em ações
espetaculares capitaneadas pela CIA: em Argo, de Ben Affleck, a retirada de
seis funcionários diplomáticos americanos do Irã conflagrado pela revolução
islâmica de 1979; em A hora mais escura, de Kathryn Bigelow, o cerco a Bin
Laden e seu suposto fuzilamento à queima-roupa numa cidade paquistanesa, em
2011.
Trailer de Argo
Três décadas separam os dois
eventos, mas nos dois filmes persiste um traço comum: a total falta de
interesse dos realizadores em conhecer o “outro”, em tentar, ao menos por um
instante, se aproximar de seu ponto de vista, buscar compreender suas
motivações. O que há é um “nós” e um “eles”, como nos velhos filmes de índios,
ou de alienígenas.
Tanto em Argo como em A hora
mais escura, todos os muçulmanos que aparecem são fanáticos, estúpidos,
traiçoeiros e cruéis – com exceção, claro, dos que se converteram em aliados
dos EUA (como o bom índio Tonto, companheiro do Zorro do faroeste).
Tudo bem. O cinema americano
levou décadas para começar a tentar conhecer os índios, para passar a vê-los
como pessoas e não como uma horda selvagem indistinta, para reconhecer que eles
tinham direitos, carências e desejos próprios. Talvez aconteça o mesmo com o
olhar lançado aos muçulmanos – e aos árabes em geral. Tomara que não demore
tanto.
Heróis individuais
De resto, não há como acusar
duas grandes produções norte-americanas de ser extremamente… norte-americanas.
Sua visão há de ser, em linhas gerais, a predominante entre seus compatriotas.
E é preciso reconhecer que nenhum dos dois filmes é deslavadamente patrioteiro
a ponto de esconder as culpas ianques no cartório. No breve prólogo de
contextualização histórica de Argo é dito claramente que os EUA ajudaram a
derrubar um presidente nacionalista iraniano democraticamente eleito para
instalar em seu lugar o corrupto e tirânico (mas pró-Ocidente) xá Reza Pahlevi.
A hora mais escura, por sua vez, já começa com uma sessão de tortura de um
prisioneiro muçulmano no pós-11 de setembro.
No mais, apesar do aparato
mobilizado nas duas ações, são nitidamente histórias de heróis individuais: o
especialista em exfiltration Tony Mendez (Ben Affleck) em Argo, a agente Maya
(Jessica Chastain) em A hora mais escura. Nada mais americano.
As diferenças mais importantes
entre os dois concorrentes estão justamente na linguagem cinematográfica
adotada, no estilo de narração, nas referências estéticas.
Argo é, evidentemente, muito
mais leve e agradável, até porque trata de uma operação baseada na astúcia, não
na violência, e que teve final feliz. O que o converte em algo mais que um
simples thriller é justamente a imbricação do tema da política internacional
com o da indústria da comunicação e do entretenimento. Se, como formulou Von
Clausewitz, “a guerra é a continuação da política por outros meios”, o cinema
(e por extensão a indústria cultural) é a continuação da guerra por outros
meios.
Ficção da ficção
Para tirar do Irã os
funcionários diplomáticos americanos, a CIA engendrou um plano ousado: simular
a produção de um filme canadense de ficção científica naquele país. Esse
entrecho – real – serve a Affleck para brincar com Hollywood como o lugar da
fabricação de mentiras. Toda essa vertente do filme – entrelaçada por uma
montagem hábil à narração da crise em Washington e no Irã – é o que ele traz de
mais divertido. A dupla de picaretas hollywoodianos encarnada por Alan Arkin e
John Goodman é responsável pelas falas mais memoráveis, como esta: “Se você
quer vender uma mentira, ponha a imprensa para vendê-la por você”. Ao que tudo
indica, uma frase recorrente em Hollywood.
Tanto na linha cômica como no
suspense e no melodrama familiar, a matriz assumida deArgo é o cinema narrativo
clássico norte-americano, sobretudo o dos anos 1970, com sua sintaxe um tanto
mais frouxa e influenciada pela televisão (e o símbolo desse declínio é o
letreiro escangalhado de Hollywood na montanha).
Já a referência que Kathryn
Bigelow parece querer mimetizar é a das reportagens televisivas em tempo real.
A ânsia de parecer documental chega a sacrificar a inteligibilidade e até a
visibilidade do que é mostrado. Na sequência crucial da invasão do bunker do
suposto Bin Laden, não se enxerga praticamente nada. Faltou apostar no
ilusionismo do cinema, na capacidade que temos de acreditar que uma cena está
sendo iluminada só por uma vela mesmo que haja potentes holofotes e refletores
no set. Enfim, se o modelo de Argo é a velha e boa Hollywood, a de A hora mais
escura é a CNN.
Ideologia escondida
Duas últimas observações críticas
– e quem não quiser saber o final do filme de Ben Affleck pode parar por aqui.
Há em Argo uma imagem eloquente, quase um carimbo de conservadorismo americano:
a do abraço entre o herói retornado e sua amada, com a bandeira das estrelas e
listras tremulando ao fundo. Clint Eastwood, ele próprio republicano e
conservador, usou a mesma iconografia no final de Sobre meninos e lobos, mas
com dolorosa ironia. Uma boa sacada de Argo, por outro lado, é o de exibir em
destaque, no final, os bonequinhos de Star Wars e outras sagas de ficção
científica do filho do protagonista. A fantasia do menino e o ofício do pai
fazem parte da mesma mitologia do triunfo, da mesma lógica da conquista e da
expansão. Até que ponto o filme de Affleck é uma reflexão crítica sobre esse
mecanismo e até que ponto se limita a reiterá-lo, talvez seja cedo para
responder.
Já em A hora mais escura, o que
há de mais ideológico é a conversão de escolhas políticas e éticas em questões
meramente técnicas. Por exemplo: mais de uma vez se faz referência no filme à
falsa alegação de que o Iraque tinha armas de destruição em massa, mas sempre
como tendo sido um inocente erro técnico, quando é quase certo que o que houve
foi má fé, para justificar a invasão militar do país. Ainda mais perigosa é a passagem
em que a investigação sobre o paradeiro de Bin Laden parece emperrar porque não
se pode mais usar métodos de interrogatório pesado (leia-se tortura). O
espectador é quase induzido a lamentar que os ventos da política tenham mudado
e que Obama tenha sido obrigado a frear a barbárie de seus compatriotas.
* Crítico de cinema e tradutor.
Fonte: Outras
Palavras
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