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quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O Dia Em Que Eu Não Nasci

Durante uma escala em Buenos Aires, Maria ouve uma canção de ninar que a transporta para a primeira infância, um episódio apagado de sua memória em meio à tragédia militar argentina
Matheus Pichonelli 5 de outubro de 2011 às 17:54h
Há uma pergunta recorrente ouvida por Maria durante sua estadia forçada em Buenos Aires em “O Dia Em Que Eu Não Nasci”, filme do diretor  Florian Cossen que acaba de entrar em cartaz em São Paulo. “Lembra-se?”, perguntam tia, tio e amigos sobre episódios da infância da personagem interpretada por Jéssica Schwarz. Um passado que ela nem sonhava que existia.
Maria se esforça, mas não se lembra. Nadadora alemã, ela faz uma conexão na capital argentina durante uma viagem rumo a Santiago, no Chile, quando perde o voo e se vê obrigada a estender sua passagem pela cidade. Ainda no aeroporto, ela ouve uma mulher ao seu lado ninar o filho com uma canção em espanhol. Pode parecer um detalhe. Mas o som do que acontece ao lado só é captado após retirar os fones do iPod dos ouvidos. Quase no mesmo instante, a música transporta Maria a algum canto da primeira infância que a leva a uma crise de choro que, a princípio, não entende – como era possível saber de cor a letra de uma música numa linguagem que ela não domina?
Essa é apenas uma das perguntas que a leva a permanecer na cidade até começar a desvendar o mistério: Maria, na verdade, não é alemã, mas uma argentina cujos pais desapareceram durante a mais sangrenta ditadura da história do País.
Assista ao trailer:

A partir de então, uma série de questionamentos passa a ser levantada: quem são seus verdadeiros pais? Como viviam? Quem é sua verdadeira família? Como foi parar na Alemanha? Como os pais adotivos entraram na história?
A passagem por Buenos Aires, que mudaria pra sempre sua vida (ou a antiga projeção de vida) a leva a conhecer a família dos verdadeiros pais, e parte de uma infância que desconhece. Numa casa simples de subúrbio, caixas com pertences, áudios e fotos são guardadas em memória de uma sobrinha que desaparecera nos anos 1970, na mesma época em que os pais foram sequestrados, e de quem nunca mais se teve notícias. Os tios que sobreviveram à ditadura contam a ela detalhes sobre sua vida anterior: os brinquedos, músicas e lugares favoritos. A cada episódio, Maria é perguntada: “Lembra-se?”.
Mas ela não se lembra. Não se lembra porque uma parte de seu passado foi simplesmente decapitada. E o passado que pensava possuir já não lhe pertence – pior: as pessoas em quem confiou a proteção, e com quem conviveu durante toda a vida, não são nem sombra do que imaginou que fossem um dia. Numa das mais comoventes cenas, ela ouve a fita de uma música feita pelos pais no dia de seu aniversário. É quando reconhece sua voz ao fundo, cantando com os pais que foram arrancados dela e deletados de sua memória.
Ao partir de um drama pessoal, Cossen realiza uma mostra de como discussões históricas recentes, encaminhadas a duras penas no país vizinho (e recém-inauguradas no Brasil), não se limitam apenas a questões como “revanchismo” ou “legalidade” – expressões que fazem o leitor comum, que não lutou nem conhece quem tenha lutado, de alguma forma, durante o regime militar, a mudar de página toda vez que lê algo em referência à chamada comissão da verdade, o grupo responsável por investigar as atrocidades ocorridas no Brasil ao longo da ditadura.
Duas cenas do filme mostram o quanto a ignorância sobre o próprio passado de um país impede famílias estraçalhadas por tragédias políticas a entender os enredos das próprias origens e destinos. Numa dessas cenas, Maria se depara com a reação do pai adotivo, que viaja às pressas à Argentina para tentar demovê-la da ideia de se reencontrar com a verdade que ele ajudou a corromper. O pai, símbolo do suporte civil da tragédia militar, argumenta que não faria diferença, para ela e a família dos verdadeiros pais, conhecerem, tantos anos depois, as origens dos fatos. No que ela responde: “Eles têm o direito de saber.”
Em outra cena, Maria convida um policial portenho, com quem faz amizade, para ajudá-la no diálogo com a verdadeira família – já que ele é o único personagem do enredo que fala alemão. O policial, sem disfarçar a vergonha, diz que não seria bem recebido por uma família de sobreviventes da ditadura em razão de suas ligações com os militares. Ele aceita a missão, desde que não tenha a identidade revelada. Mas seu principal medo era que os familiares (“essa gente”, na descrição dele) descobrissem que era filho de um militar que havia atuado durante o regime. Maria, então, pergunta se o pai do amigo também havia torturado e matado, e ele responde que não tem a menor ideia. “Não quero saber de coisas que me levem a odiar meu pai”, justifica ele.
Nada poderia ser mais emblemático sobre o receio de se abrir a caixa de Pandora que nos regimes militares latinos, patrocinados pelos governos americanos, deixaram como saldo milhares de mortos, e milhares de famílias sem notícias de seus filhos, netos, sobrinhos, pais, amigos e irmãos.
Não por acaso, o filme passa reto dos principais cartões postais da capital argentina: a elegância da Recoleta, o luxo do Puerto Madero, o charme do Caminito. A câmera, o tempo todo, fixa-se no interior de casas e estabelecimentos (como o hotel que a abriga) de paredes sujas e descascadas, ou no caos das ruas que a cerca – como se o diretor estivesse mais interessado no intestino, e não em discursos oficiais envernizados sobre a história de um período sombrio desenterrado.
“Mas no Brasil vivemos uma ditadura moderada. Na Argentina e no Chile mataram aos milhares, e aqui, às centenas”, argumentam, num notável exercício de preguiça mental, os que se opõe à revelação dos fatos.
“O Dia Em Que Eu Não Nasci” é uma resposta dada em boa hora, num momento em que, no Brasil, há dúvidas pertinentes sobre a capacidade de a Comissão da Verdade trazer a verdade à tona. O longa faz lembrar que crime é sempre crime – seja cometido às milhares ou às centenas – e que, sem prejuízo dos números, não há documento (nem filme) que mensure a dimensão da dor de não saber de onde viemos nem para onde vamos. E olha que, nesse quesito, os argentinos estão a anos luz da disposição brasileira de arrebentar, de forma definitivamente, os seus próprios porões.

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