Processos de infantilização das
campanhas eleitorais sempre ocorrem nas democracias de massa. No esforço para
capturar os votos da maioria em sociedades em que o poder político e econômico
é detido por uma minoria, algum tipo de manipulação é imprescindível.
Referindo-se ao século XIX, quando surgiram as primeiras democracias
eleitorais, Eric Hobsbawm observou as afinidades entre a era da democratização
e a hipocrisia política(1).
Estudiosos sofisticados não
apenas teorizaram como justificaram esse processo, considerando-o um componente
positivo de qualquer democracia possível. Foi o caso de Joseph Schumpeter, em
seu clássico Capitalismo, socialismo e democracia(2), publicado em 1942 e hoje
mais influente do que nunca. Para esse autor austríaco exilado nos Estados
Unidos, é teoricamente incorreto e politicamente arriscado levar a sério a
etimologia de democracia (poder do povo). O povo jamais teve ou terá o poder,
que sempre foi e será das elites. Nesse sentido, a democracia se define como um
conjunto de procedimentos que asseguram a concorrência entre elites organizadas
em empresas políticas, ou seja, partidos, que concorrem pela preferência do
consumidor político, isto é, o eleitor. Este, como qualquer consumidor, não é
um exemplo de racionalidade ao fazer sua escolha. Daí algumas condições para
que a democracia prospere, como, por exemplo, um debate político que não
coloque questões estruturais em pauta. E que o eleitor deixe o eleito em paz. A
este, e não àquele, o mandato pertence.
Essa concepção dita procedimental
da democracia, ao traçar uma forte analogia entre a política e o mercado
(idealizando este último), contribui para legitimar a superficialização do
debate político, o alijamento da maior parte da população de questões mais
sérias e a forte presença dos profissionais em propaganda eleitoral. É provável
que o fantasma de Schumpeter ronde as atuais eleições brasileiras,
especialmente no “horário político” da TV e nas matérias publicadas pela grande
imprensa. Até porque, como se trata de pleitos municipais, é mais fácil a
disseminação da ideia de que basta um bom gerente para que os principais
“problemas” estejam em boas mãos.
Não exageremos nas
simplificações. Para além da manipulação – e para que esta funcione em maior ou
menor grau –, existem fortes determinações estruturais. É o caso da construção
altamente ideologizada de uma comunidade de indivíduos-cidadãos livres e
iguais, inclusive quanto ao acesso à informação política, em sociedades
marcadas por ferozes relações de exploração e dominação. Uma propaganda do TSE
que apresenta o eleitor como “patrão” expressa, de modo enviesado e um tanto
confuso, essa construção. Não ficaria mais próximo da vida como ela é
apresentar a maioria dos eleitores como “não patrões”?
Essa maioria não patronal é o
grande alvo do “horário político”. A ela se dirigem os candidatos travestidos
de super-heróis, prometendo, a cada quatro anos, resolver os “problemas” de
moradia, assistência médico-hospitalar, creche, esgoto, água tratada, emprego,
habitação etc. Só não explicam a origem de seus superpoderes ungidos de
espírito público e amor ao próximo, bem como por que, historicamente, tudo isso
desaparece assim que se encerra a estação de caça aos votos.
Na vida real, os “patrões” não
costumam rasgar dinheiro. Não gastam seu precioso tempo assistindo ao show dos
horários eleitorais em que um promete mudar aeroportos ou erguer aerotrens;
outro afirma com a maior seriedade que eliminará congestionamentos de trânsito
aproximando locais de trabalho e de moradia (e vice-versa); um terceiro garante
que nomeará um ministério do nível de ministros (grito socorro?) e que os
serviços públicos funcionarão porque ele aparecerá onde não o esperam (Jânio
vem aí?).
Nenhum se refere a um aspecto
importantíssimo para a aplicação de políticas, inclusive no plano municipal:
nessa situação de crise capitalista que se aprofunda e de forte comprometimento
das contas nacionais com o pagamento da dívida pública a boa parte dos grandes
“patrões” (bancos, fundos de pensão, grandes empresas industriais brasileiras e
transnacionais), é quase nula a capacidade do Estado, em seus distintos níveis,
de colocar em prática políticas sérias, especialmente sociais. Poupa-se o
eleitor desse assunto enfadonho, até porque – reza o saudável senso comum –
crise capitalista não é assunto de prefeito ou vereador. Melhor destacar que é
amigo da presidenta e do governador; que é administrador experiente e
competente; que, assim como foi o maior ministro de tal área, será o maior
prefeito. E que, ao contrário do adversário, não é amigo do Maluf.
É claro que existem diferenças
políticas entre as candidaturas relevantes, aí se incluindo partidos cuja
competitividade eleitoral é ínfima. E, mesmo em seus melhores momentos, as
disputas eleitorais filtram e refratam os principais interesses das forças
sociais. Mas um importante aspecto comum em uma cidade altamente politizada
como São Paulo consiste no peso extraordinário que adquire a interpelação do
eleitorado como essencialmente passivo. Lutas populares, nem pensar. Basta o
voto (claro que em mim!) para mudar o destino da maioria daqueles a quem a
propaganda eleitoral se dirige. Um grande autor, em sua fase juvenil, fez uma
crítica mordaz desse duplo mundo, o “celestial”, onde, apagadas as diferenças,
todos viram “cidadãos”; e o “terreno”, onde o homem é o lobo do homem (3).
Nas grandes metrópoles brasileiras, essa dupla vida nos incomoda quando deparamos com homens e mulheres pobres, expostos ao sol inclemente deste inverno surreal, segurando cartazes de candidatos com os quais não têm nenhuma afinidade político-eleitoral, até porque isso é o que menos importa. Para quem paga, é tirar partido de mão de obra sobrante e, portanto, barata. Para quem segura o rojão, também tanto faz ser placa de empreendimento imobiliário ou de qualquer “político”. Melhor do que “compro ouro”. Para todos nós que passamos de carro, por que se indignar? No melhor dos casos, cumpriremos nosso dever cívico, depositando o voto na urna, e esperamos – quem sabe até cobrando – que as “autoridades” resolvam a situação dessa gente com as quais (situação e gente) nada temos a ver.
Nas grandes metrópoles brasileiras, essa dupla vida nos incomoda quando deparamos com homens e mulheres pobres, expostos ao sol inclemente deste inverno surreal, segurando cartazes de candidatos com os quais não têm nenhuma afinidade político-eleitoral, até porque isso é o que menos importa. Para quem paga, é tirar partido de mão de obra sobrante e, portanto, barata. Para quem segura o rojão, também tanto faz ser placa de empreendimento imobiliário ou de qualquer “político”. Melhor do que “compro ouro”. Para todos nós que passamos de carro, por que se indignar? No melhor dos casos, cumpriremos nosso dever cívico, depositando o voto na urna, e esperamos – quem sabe até cobrando – que as “autoridades” resolvam a situação dessa gente com as quais (situação e gente) nada temos a ver.
Exatamente devido aos impactos
que produz no sentido de desorganizar a ação coletiva e autônoma dos dominados
– inclusive no que se refere à produção e circulação de informações –, esse
processo de “despolitização” não é politicamente neutro. Ao contrário,
contribui, em São Paulo ou em São Luís, para a reprodução de um dos padrões de
dominação e exploração mais predatórios do planeta.
Também cabe evitar a ideia
igualmente simplista de que o esforço de manipulação opera sobre um terreno
vazio e passivo (um espécie de folha de papel em branco) e sempre obtém os
mesmos resultados. No fundamental, o que está em jogo é, em cada conjuntura, a
maior ou menor capacidade de intervenção popular na vida política.
Essa capacidade sofreu drástica
redução nos últimos anos. Partidos antes combativos passaram por fortes
mutações, ao longo das quais obliteraram seus espaços de participação
(inclusive debates internos). Políticas sociais importantes para, em caráter
emergencial, melhorar as condições de vida de populações que estavam em extrema
miséria tampouco ampliaram aquela capacidade. Ao contrário, reforçaram a
percepção de que o governante é um pai (ou uma mãe), com especial carinho para
com os mais desprotegidos. E, como vimos, no plano nacional, sem tempo para
negociar com a totalidade dos professores das universidades federais envolvidos
numa ação coletiva (uma greve) durante mais de cem dias; e, no
estadual/municipal, o bárbaro massacre dos moradores do Pinheirinho, em São
José dos Campos (SP), também organizados na luta política por direitos
constitucionais elementares. Enquanto isso, o especulador não tem do que se
queixar, e um candidato “do bem” se vangloria de, quando secretário estadual da
Educação, jamais ter deparado com uma greve de professores.
Sorte dos trabalhadores e
trabalhadoras que não se metem em confusão, até porque esse processo de
despolitização segue pari passu com o de judicialização da vida política. Mas
por que nos preocuparmos? Afinal, a essência da maioria dos candidatos pode se
resumir no refrão de um deles: passa o tempo todo pensando nos pobres.
Com essa drástica redução da
capacidade de ação popular coletiva, não é mais necessário, como foi em 1989,
que um importante dirigente industrial, Mário Amato, alerte que, caso
determinado candidato vencesse, 800 mil empresários abandonariam o Brasil; ou,
no pleito seguinte, outro peso pesado dos industriais advertisse que a eleição
do mesmo candidato seria o equivalente a uma bomba de hidrogênio despencar
sobre este país abençoado por Deus. Na campanha eleitoral de 2002, o
marqueteiro-mor do mesmo candidato, ao coordenar importantes figuras políticas
na feitura de uma propaganda televisiva, disse para todos erguerem a mão em
forma de L. “A mão direita ou a esquerda?”, perguntou alguém. “Como quiser”,
respondeu o pragmático guru, “quem for de direita, com a direita; quem for de
esquerda, com a esquerda.”(4) Não por mera coincidência, assinou-se a “Carta aos
brasileiros”; apesar de algumas rusgas passageiras, houve forte apoio
empresarial; e o partido concluiu sua passagem para a idade da razão.
Os impactos “despolitizadores”
sobre os processos induzem a grande maioria das classes populares a perceber as
eleições como o único meio legítimo de fazer política. Essa contração foi
acompanhada por um deslocamento: as eleições “acontecem” principalmente na
televisão e no rádio (as chamadas redes sociais ainda engatinham nesse
processo). Lá chegando, incorporaram-se a um dispositivo que, além do conteúdo
abertamente conservador, transforma tudo em entretenimento. Em outros termos, o
centro da atividade eleitoral mais visível se transfere para meios de
comunicação tremendamente oligopolizados e que reproduzem, na imensa maioria
das transmissões (novelas, noticiários, propagandas), processos de
infantilização. Lutas pelo aprofundamento da participação política no Brasil
requerem democratizar e diversificar os meios de comunicação.
Quando Schumpeter escreveu seu
célebre livro sobre democracia, o desfecho da Segunda Guerra Mundial,
fortemente articulada a uma crise do capitalismo, ainda estava incerto e
restavam poucas democracias liberais no planeta. Em um livro schumpeteriano bem
mais simplista, A terceira onda, Samuel Huntington se congratulava, em 1993,
pelo espraiamento desse regime por grande parte do planeta (5). Todavia, no atual
contexto de profunda crise capitalista, tendem a aumentar os desencontros entre
esse regime e a participação popular. Se Schumpeter e tantos outros negam a
possibilidade do poder do povo, diversos estudiosos, como Slavoj Zizek, ao abordar uma questão bem
mais específica, recorrem a uma expressão cada vez mais em voga para
nos referirmos a essa reviravolta sinistra: a democracia se volta contra os
povos (6).
Diante dos riscos de que o
modelo schumpeteriano de democracia chegue ao seu esgotamento no bojo da atual
crise, é urgente inventar novas e profundas formas de efetiva participação
popular na política.
Resta saber se isso é possível
sem reinventar a sociedade.
Notas
1. E. Hobsbawm, A era dos
impérios, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1988, p.130.
2. J. A. Schumpeter,
Capitalismo, socialismo e democracia, Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1961.
3. Karl Marx, A questão
judaica, Boitempo, São Paulo, 2010.
4. A sequência aparece no
documentário Entreatos,de João Moreira Salles.
5. Samuel Huntington, A
terceira onda: a democratização no final do século XX, Ática, São Paulo, 1994.
6. Slavoj Zizek, “Democracy versus the people. A new
account of Haiti’s recent history shows how the genuinely radical politics of Lavalas and its”, New Statesman, 14 ago. 2008.
* Publicado no Sábado, 06
Outubro 2012 03:20 por Le Monde
Diplomatique BR.
**Professor do Departamento de
Política da PUC-SP.
Fonte:
O
Grande ABC
Um comentário:
Meu caro, uma bela, profunda e pertinente análise. Data venia (está de moda), estou reproduzindo em minha página, com os devidos créditos.
Elson Rezende de Mello
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