CELSO LUNGARETTI*
Reproduzimos aqui texto publicado em 15 de setembro de 2011, por
volta do 40º aniversário da morte do Comandante Carlos Lamarca, assassinado no
interior da Bahia pela ditadura militar. A reemergência deste texto não se faz aleatoriamente, mas celebra o
que seria o aniversário de nascimento de Carlos Lamarca (23/10/1937).
Neste sábado transcorre o 40º
aniversário da morte do comandante Carlos Lamarca, que estava debilitado e
indefeso quando foi covardemente executado pela repressão ditatorial no sertão baiano,
em 17 de setembro de 1971, numa típica
vendetta de gangsteres.
O que há, ainda, para se dizer
sobre Lamarca, o personagem brasileiro mais próximo de Che Guevara, por
história de vida e pela forma como encontrou a morte?
Foi, acima de tudo, um homem
que não se conformou com as injustiças do seu tempo e considerou ter o dever
pessoal de lutar contra elas, arriscando tudo e pagando um preço altíssimo pela
opção que fez.
Teve enormes acertos e também
cometeu graves erros, praticamente inevitáveis numa luta travada com tamanha
desigualdade de forças e em circunstâncias tão dramáticas.
Mas, nunca impôs a ninguém
sacrifícios que ele mesmo não fizesse. Chegava a ser comovente seu zelo com os
companheiros -- via-se como responsável pelo destino de cada um dos quadros da
Organização e, quando ocorria uma baixa, deixava transparecer pesar comparável
ao de quem acaba de perder um ente querido.
Dos seus melhores momentos,
dois me sensibilizaram particularmente.
Logo depois do Congresso de
Mongaguá (abril/1969), quando a VPR saía de uma temporada de luta interna e
de quedas em cascata, o caixa estava a
zero e a rede de militantes, clandestinos em sua maioria, carecia desesperadamente
de dinheiro para manter as respectivas
fachadas -- qualquer anomalia, mesmo um atraso no pagamento de aluguel,
poderia atrair atenções indesejáveis.
Mas, o chamado grupo tático fora o setor mais duramente
golpeado pelas investidas repressivas.
Então, quando se planejou a
expropriação simultânea de dois bancos vizinhos, na zona Leste paulistana, o
pessoal experiente que sobrara não bastava para levá-la a cabo.
Eu e os sete companheiros
secundaristas que acabáramos de ingressar na Organização fomos todos escalados
-- na enésima hora, entretanto, chegou a decisão do Comando, que me designou para criar e coordenar um
setor de Inteligência, então fiquei de fora.
Lamarca, procuradíssimo pelos
órgãos repressivos, fez questão de estar lá para proteger os recrutas no
seu batismo de fogo. Os outros quatro
comandantes tudo fizeram para demovê-lo, em nome da sua importância para a
revolução. Em vão. A lealdade para com a
tropa nele falava mais alto.
Depois de muita discussão,
chegou-se a uma solução de compromisso: ele não entraria nas agências, mas
ficaria observando à distância, pronto para intervir caso houvesse necessidade.
Houve: um guarda de trânsito,
alertado por transeunte, postou-se na porta de um dos bancos, arma na mão,
pronto para atingir o primeiro que saísse.
Lamarca, que tomava café num
bar a 40 metros de distância, só teve tempo de apanhar seu .38 cano longo de
competição, mirar e desferir um tiro dificílimo -- tão prodigioso que, no mesmo
dia, a ditadura já percebeu quem fora o autor. Só um atirador de elite seria
capaz de acertar.
Segundo o Darcy Rodrigues, foi
a vida dele que Lamarca salvou. O próprio, contudo, contou-nos que seria um dos
novatos o primeiro alvejado.
Como resultado, a repressão
teve pretexto para fazer de Lamarca o
inimigo público nº 1 -- e, claro, o fez. A imagem dele foi difundida à
exaustão, obrigando-o a redobrar cuidados e até a submeter-se a uma cirurgia
plástica.
Também teve de brigar muito com
os demais dirigentes e militantes, para salvar a vida do embaixador suíço Giovanni
Butcher, quando a ditadura se recusou a libertar alguns dos prisioneiros
pedidos em troca dele e ainda anunciou que o Eduardo Leite (Bacuri) morrera ao
tentar fugir.
Dá para qualquer um imaginar a
indignação resultante -- afinal, as (dantescas) circunstâncias reais da morte
do Bacuri ficaram conhecidas na
Organização.
Mesmo assim Lamarca não arredou
pé, usando até o limite sua autoridade para evitar que a VPR desse aos inimigos
o monumental trunfo que as Brigadas Vermelhas mais tarde dariam, ao executarem
Aldo Moro. O episódio foi tão traumático que ele acabou deixando a VPR.
E, no MR-8, novamente divergiu
da maioria dos companheiros -- quanto à sua salvação.
Pressionaram-no muito para que
saísse do Brasil, preservando-se para etapas posteriores da luta, pois em 1971
nada mais havia a se fazer. Aquilo virara um matadouro.
Conhecendo-o como conheci,
tenho a certeza absoluta de que não perseverou por acreditar numa reviravolta
milagrosa. Em termos militares, suas análises eram as mais realistas e acuradas.
Nunca iludia a si próprio.
O motivo certamente foi a
incapacidade de conciliar a idéia de
fuga com todos os horrores já ocorridos, a morte e os terríveis
sofrimentos infligidos a tantos seres humanos idealistas e valorosos. Fez
questão de compartilhar até o fim o destino dos companheiros, honrando a
promessa, tantas vezes repetida, de vencer ou morrer.
Doeu – e como! – vermos os
militares exibindo seu cadáver como troféu, da forma mais selvagem e repulsiva.
Mas, ele havia conquistado
plenamente o direito de desconsiderar fatores políticos e decidir apenas como
homem se preferia viver ou morrer.
Merece, como poucos, nosso
respeito e admiração.
*Jornalista, escritor e ex-preso
político, foi companheiro de militância de Lamarca na VPR.
Fonte: Jornal
O Rebate
Rara foto do corpo do guerrilheiro Carlos Lamarca (1937-1971) revela os vários ferimentos a bala que ele sofreu no cerco militar que o matou, no interior da Bahia. Fonte: Ivanilson Oliveira
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