por Rede 2 de Outubro
“O ser
humano é descartável no Brasil/como modess usado ou bombril
Cadeia
guarda o quê o sistema não quis /esconde o que a novela não diz”
Racionais
MCs, “Diário de um Detento”,
Em 2 de outubro de
1992, no mínimo 111 homens presos e desarmados foram brutalmente executados por
mais de 300 policiais militares fortemente armados, fato nomeado historicamente
como o “Massacre do Carandiru”.
Foi o maior massacre
da história das penitenciárias brasileiras, só comparável aos grandes massacres
indígenas e africanos do período Escravocrata e aos massacres de grandes
rebeliões populares ao longo da história do país, como Palmares e Canudos. A
exemplo do que ocorreu em relação às prisões, torturas e assassinatos da
Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1988), também em relação ao “Massacre
do Carandiru”, ocorrido em pleno regime ‘democrático’, operou-se e ainda se
opera uma série de medidas para negar às vítimas e à sociedade o direito à
memória, à verdade e à justiça.
Passados quase 20 anos
do Massacre, os responsáveis também seguem impunes. O estado de São Paulo e o
próprio Estado Brasileiro insistem em não cumprir as importantes recomendações
feitas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA relacionadas ao
ocorrido (http://www.cidh.oas.org/annualrep/99port/Brasil11291.htm). A questão
se torna ainda mais grave quando se observa que, no lugar de desmantelar as
estruturas repressivas que desencadearam o massacre e responsabilizar todos os
seus executores diretos ou indiretos, a estrutura repressiva segue a cada dia
mais fortalecida e muitos dos responsáveis pelo Massacre têm sido absurdamente
promovidos (basta verificar quem é o atual comandante da Rota)[2].
A REDE 2 DE OUTUBRO
foi composta em 2011 por um conjunto de organizações, movimentos sociais e
grupos culturais que partilham a percepção de que a dinâmica social que
produziu o Massacre do Carandiru ainda continua vigente e segue a fomentar
massacres cotidianamente.
Desde a organização do
ato político-cultural em memória dos 19 anos do Massacre do Carandiru,
realizado no ano passado, a REDE 2 DE OUTUBRO tem promovido reuniões,
seminários, debates e outras atividades com o objetivo de denunciar e debater
as origens e o significado das terríveis condições de encarceramento, do
caráter seletivo do sistema penal e prisional, do uso desmedido da violência
pelo Estado com evidente corte racial e de classe, entre outras questões.
O presente manifesto é
fruto dessa caminhada e expõe um pouco como a REDE 2 DE OUTUBRO pensa a tão
propalada questão da “segurança pública” e como pretende pautar sua atuação
daqui em diante.
OS MASSACRES DE ONTEM… OS MASSACRES DE HOJE…
O Massacre do
Carandiru não é fato isolado no tempo. Sucedeu e foi sucedido por milhares de
massacres contínuos que, a serviço dos processos produtivos voltados aos altos
lucros de alguns poucos donos do país, moeu e exterminou milhões de brasileiras
e brasileiros oriund@s das camadas mais populares.
Não apenas faz parte
de uma história de 512 anos de massacres contra nossa população mais pobre,
como também é símbolo da infeliz convergência de duas políticas bárbaras de
Estado que ainda hoje vigoram plenamente: o extermínio e o encarceramento em
massa.
Em números e fatos,
não é difícil dimensionar o tamanho da barbárie cometida pelo Estado brasileiro
contra as camadas populares (a quem, em tese, deveria proteger) sob o argumento
falso de “combate à criminalidade e à violência”. Segundo o último “Mapa da
Violência 2011 – Uma radiografia das mortes violentas de jovens no Brasil”,
produzido pelo Instituto Sangari e divulgado pelo Ministério da Justiça
(http://www.sangari.com/mapadaviolencia/mapa2011.html), entre 1981 e 2011 foram
assassinadas mais de 1 milhão de pessoas em pleno Brasil “redemocratizado”.
Destas, apenas entre 1998 e 2008, mais de 520 mil pessoas foram assassinadas
por aqui! Uma média de cerca de 47.360 homicídios por ano, que segue crescendo
ano após ano!
Para além de todas as
atrocidades cometidas durante a Ditadura Civil-Militar, o povo brasileiro se
viu acuado por centenas de massacres perpetrados em plena época dita
democrática[3]: logo depois da promulgação da Constituição (Cidadã?) de 1988,
pouco antes do Massacre do Carandiru, mães, pais, familiares e amig@s das
vítimas sofreram com as Chacinas de Acari (1990) e a de Matupá (1991); depois
do Massacre do Carandiru (1992), o sofrimento seguiu com as execuções ocorridas
nas Chacinas da Candelária e de Vigário Geral (1993), do Alto da Bondade
(1994), de Corumbiara (1995), de Eldorado dos Carajás (1996), de São Gonçalo e
da Favela Naval (1997), de Alhandra e do Maracanã (1998), da Cavalaria e da
Vila Prudente (1999), de Jacareí (2000), de Caraguatatuba (2001), da
Castelinho, do Jd. Presidente Dutra e de Urso Branco (2002), do Amarelinho, Via
Show e do Borel (2003), de Unaí, do Caju, da Praça da Sé e de Felisburgo
(2004), a Chacina da Baixada Fluminense (2005), os Crimes de Maio (2006), do
Complexo do Alemão (2007), do Morro da Providência (2008), de Canabrava (2009),
a Chacina de Vitória da Conquista e os Crimes de Abril na Baixada Santista
(2010), a Chacina da Praia Grande (2011), Massacre do Pinheirinho, de
Saramandaia, os Crimes de Junho, Julho, Agosto e Setembro (2012)…
O sangue vertido em
todas essas chacinas escorre da mesma classe social, da mesma cor, da mesma
faixa etária: ao longo de 10 anos (1998 a 2008), a cada três assassinatos, dois
foram de negr@s, em sua esmagadora maioria jovens pobres do sexo masculino,
entre 15 e 24 anos.
Esse quadro não é
diferente no sistema prisional. Aquelas e aqueles que conseguem se esquivar das
miras policiais acabam, muitas vezes, trancafiados e torturados, por anos a
fio, em um sistema prisional extremamente violento e degradante, cada vez mais
extenso e superlotado: entre 1995 e 2011, a população prisional teve
crescimento de 250% contra 25% de crescimento da população em geral, segundo
dados oficiais do próprio Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)[4]. Em
2012, já temos mais do que 550 mil pessoas presas no Brasil. Apenas em São
Paulo, nesse ano, a média é de 9.000 pessoas presas contra 6.000 que são
libertas por mês, segundo dados apurados in loco, pela Pastoral Carcerária, e
junto à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo; ou seja: a cada mês, São
Paulo abriga 3.000 pessoas a mais em seu sistema prisional.
As pessoas que povoam
o sistema prisional brasileiro são parte do mesmo grupo social daquelas
vitimadas no decorrer da longa História Brasileira dos Massacres: 80% da
população prisional são acusad@s ou sentenciad@s por crimes contra o patrimônio
ou por pequeno tráfico de drogas (quase metade ainda sem condenação); cerca de
55% estão presas por crime sem grave ameaça ou violência à pessoa; 52% estão
presas por crimes sem violência ou grave ameaça; mais da metade tem menos do
que 29 anos; 90% sequer completaram o ensino médio; 60% dessas pessoas são
negras…
Igualmente massacradas
são as famílias das vítimas da violência do Poder Público, sobretudo as
mulheres, que acabam segurando as pontas da família quando o ente querido é
executado e enfrentam todo tipo de sevícias praticadas por agentes estatais
(como a ignóbil revista vexatória, por exemplo) para manter contato e fornecer
o mínimo de subsídio a@ filh@ que é pres@.
O Massacre do
Carandiru é extremamente emblemático, portanto, das duas principais dimensões,
bem estreitas entre si, dos massacres que historicamente são perpetrados contra
o nosso povo pobre, preto e periférico: a prisão degradante e o extermínio
covarde.
OS MASSACRES DO COTIDIANO
No entanto, é
necessário entender que há várias outras dimensões desses massacres históricos
que, a despeito da menor intensidade de violência e de ocorrerem de modo menos
ostensivo, também fazem parte da mesma engrenagem de moer, explorar e gastar
nosso povo.
Tais dimensões estão
contidas em um contexto de precarização da vida cotidiana na periferia por meio
da negação de condições mínimas de sobrevivência e da repressão das tentativas
populares de superar a completa ausência de políticas públicas sociais.
No universo da
trabalhadora e do trabalhador, são incontáveis as agressões diárias a que se
submetem na tentativa de garantir o mínimo de dignidade em suas vidas:
Das remotas periferias
até o excludente centro da cidade de São Paulo, são muitas as horas despendidas
diariamente em ônibus superlotados, em trens igualmente superlotados, lentos e
sucateados (com panes constates), para enfim chegar ao posto de trabalho, em
regra igualmente precário: aquelas e aqueles que superam o desemprego se
submetem, no mais das vezes, a condições horríveis de trabalho (para se ter uma
ideia, em 2011, foram quase 500 mortes em acidente de trabalho apenas em São
Paulo![5]).
No fim do dia, horas e
mais horas para retornar para casa… Casa que, por vezes, na verdade é um
barraco precário e frágil, improvisado em algum terreno abandonado, em alguma
beira de represa, em algum morro desocupado, sem qualquer possibilidade de
acesso à mínima infraestrutura para garantir os serviços sanitários mais
básicos[6].
No lugar de intervir
para promover o acesso à moradia digna, para estruturar os espaços ocupados
legitimamente, o Poder Público apenas aparece para expulsar violentamente as
pessoas de seus lares, para tencionar as comunidades e para criminalizar os
chamados “suspeitos” de toda sorte de suspeição. Às vezes em troca de um
miserável “cheque-despejo” aos “invasores”, geralmente famílias migrantes de
origem afro-indígena e norte-nordestina que já tinha sido expulsas de seus
locais de origem; às vezes o troco é o porrete e a prisão desses “bandidos” de
“cor padrão”…
Isso quando as favelas
não são incendiadas criminosamente justamente em áreas que se pretende
“revitalizar”…
Para piorar, a
precariedade da moradia vem acompanhada da precariedade no serviço de saúde:
não há médicos, não há hospitais, não há unidades básicas de saúde para dar
conta da enorme demanda originada por esse ambiente de descaso.
Para piorar ainda
mais, as escolas públicas são poucas, escassas, de péssima qualidade, com
professor@s mal pag@s, desmotivad@s e adoecid@s, diretor@s mal preparad@s e
nenhuma interação entre as atividades escolares e as necessidades da
comunidade.
Faltam vagas nas
creches (apenas na cidade de São Paulo estima-se oficialmente um déficit de ao
menos 126.000 vagas de creches![7]) e falta qualidade naquelas existentes, cada
vez mais terceirizadas a organizações privadas; falta acesso amplo e
democrático a um ensino básico de qualidade e a políticas afirmativas que
assegurem reparação na forma de acesso a universidades públicas com excelência
no ensino, pesquisa e extensão.
Lazer, então, é
utopia! Nada se estrutura na periferia para prover o mínimo de acesso a
atividades esportivas e culturais. O que há é fruto do esforço das próprias
comunidades, que pouco a pouco vão percebendo que só podem contar com a própria
força. Ainda assim, as iniciativas populares vivem ameaçadas pelo Poder
Público, sempre em prontidão para restringir ou proibir atividades culturais
autônomas, como saraus, rodas de samba, bailes musicais, encontros artísticos
etc.
Esse processo de
abandono das periferias é casado com o processo de higienização das regiões
centrais.
Se ficarmos apenas no
ano de 2012, podemos contar diversos episódios reveladores de uma política
espúria de expulsão dos mais pobres da região central da cidade: os incêndios
na Favela do Moinho; a operação “dor e sofrimento” na Cracolândia; os incêndios
nas favelas do Piolho, Humaitá, Paraisópolis, Vila Prudente, Alba, Corujão,
Areião e tantas outras entre as mais de 50 intencionalmente incendiadas apenas
em 2012; a proibição dos artistas de rua; a perseguição aos camelôs; a
proibição do “sopão”; a proibição dos engraxates na Paulista; a “operação
delegada”; a “operação espantalho”…
De operação em
operação, vai se consolidando um violento processo de expulsão da população
mais pobre que habita as ruas do centro e as regiões cuja valorização
imobiliária aumenta e onde os interesses dos grandes projetos urbanos crescem
os olhos em cima.
Essas mesmas pessoas
hoje expulsas de suas casas, desprovidas de seus meios de sobrevivência, do
acesso à mínima infraestrutura oferecida no centro, destituídas do acesso aos
serviços mais básicos, amanhã estarão provavelmente ainda mais vulneráveis ao
processo de criminalização da pobreza e, por consequência, serão alvos mais
fáceis das miras e das algemas policiais.
O massacre se estende
à falta de um acesso democrático à informação e à comunicação, deixando a
maioria da população à mercê de monopólios comunicacionais de caráter sobretudo
comercial e espetacular, muitos dos quais reproduzem e intensificam o massacre
simbólico e contribuem para estigmatizar, criminalizar e justiçar
midiaticamente os trabalhadores-alvos, ampliando preconceitos e o clamor
punitivo generalizado. Ganham com isso toda a indústria do medo e do pânico,
nas suas mais variadas expressões: a indústria dos condomínios fechados, a
indústria das armas e da segurança particular, a indústria dos seguros de vida
e de proteção patrimonial, a indústria da medicina psiquiátrica e dos
antidepressivos etc. As prisões em massa e as “matanças dos suspeitos”
tornam-se “verdadeiros” bodes expiatórios da expiação sem fim, são aplaudidas
em coro nos diversos “programas espetaculares”, até que esta apologia da
violência se volte contra os que hoje seguem aplaudindo. Dissimula-se, então,
surpresa e indignação, que logo se esvai diante da próxima “caçada aos
bandidos” do próximo turno.
Para dar conta do
problema da segurança pública hoje é preciso desvendar, correlacionar e
enfrentar essas diversas dimensões dos massacres perpetrados contra as
populações periféricas. A reversão desse quadro depende, sobretudo, da luta, da
união, da organização e da coragem daquelas e daqueles que sofrem
cotidianamente com a violência histórica, estrutural e estruturante do Estado
brasileiro.
Para continuar lendo o manifesto, clicar na fonte: Coletivodar.
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