Por Deni Rubbo
Fotos Ponte
16/09/2014
Nas explosões do ano de 1968, o
filósofo Hebert Marcuse foi perguntado em uma palestra se se poderia combater o
medo com a violência. O autor de O homem
unidimensional respondeu que a violência é algo muito perigoso aos mais
frágeis. E acrescentou que existem diferentes aspectos de violência com funções
igualmente diferentes. Assim, existiriam dois modus operandi que regulam a
violência: a violência da agressão e a violência da defesa. Ou seja, existe a
violência da polícia, do Exército, da Ku Klux Klan e uma violência de oposição
que responde a essas manifestações agressivas de violência.
Hoje em São Paulo, mais de 45
anos depois das palavras de Marcuse o cruzamento da violência da agressão com a
violência de oposição cruzaram-se no cruzamento da Ipiranga com a Avenida São
João. Trabalhadores, moradores do centro, negros, mulheres, grávidas, crianças
e sem teto enfrentaram a violência da sociedade, a violência legal, a violência
institucional. Sua violência, a violência dos moradores (sem moradia) foi
defensiva. Eles têm razão.
Por volta das dez horas, no
cruzamento, aglomeraram-se uma multidão de pessoas e alguns ocupantes da Frente
de Luta por Moradia (FLM) que haviam saído do prédio logo após a liminar de
reintegração de posse em um hotel abandonado na São João, para observar os
próximos movimentos da ação policial. Havia muita indignação. A polícia fez um
cordão e não deixou ninguém passar. Depois de alguns minutos, um policial
chamou uma das pessoas que ali se encontrava e disse:
– Não queremos entrar em
conflito. Só entraremos em ação caso sejamos provocados. Prometemos.
A moradora concordou com o
policial, virou-se para o restante do grupo e anunciou:
– Nós não vamos arremessar nada
neles, nem pedras, nem paus. Nós nunca damos o primeiro tapa, ouviram? Por
favor, vamos permanecer aqui de maneira pacífica.
Todos concordaram, aplaudiram e
cumpriram com o prometido.
Quinze minutos depois, a mesma
polícia, descumpriu sua promessa e executou a violência da agressão, explicada
por Marcuse. Balas de borracha e gás lacrimogênio espalharam-se pelas ruas tão
rapidamente que quanto mais se corria, mais elas apareciam. A ardência dos
olhos só era um detalhe. Nesse mesmo momento, a televisão transmitia que
“vândalos” haviam iniciado a violência e a polícia simplesmente estava
retaliando. Curiosamente, graças ao manejo de habilidade linguística da
sociedade estabelecida, nunca se chama a violência policial de violência. Por
outro lado, com toda facilidade, se nomeia violência à ação dos moradores que
se defendem da polícia. Nesse mesmo momento uma mulher grávida caiu na rua, bem
ao meu lado. Rapidamente a socorri e então ela me disse.
– Precisamos resistir, eu e ele
(o bebê). Precisamos de futuro. Precisamos estar juntos.
Desnorteado, apavorado, em
frações de milésimos de segundos, consegui não sei como nem porque lembrar de
Eles não usam Black-Tie (Leon Hirzman, 1981) e da cena em que Maria (Bete
Mendes), grávida, levava chutes na barriga da polícia. E aquelas palavras, tão
fortes, intensas, também me recordaram outra cena de um outro filme, Segunda
Feira ao sol (Fernando León de Aranoa, 2002) em que o personagem Sanca (Javier
Bardem) é questionado sobre o fracasso da greve que desencadearam e,
posteriormente, foi pretexto para sua demissão. “De que adianta? Não
conseguiram nada e, além disso, ninguém mais se lembra”. Ele responde: “fizemos
que as pessoas soubessem e conseguimos ficar juntos”. Nem ela, nem eu, nem quem
estava lá vai esquecer.
Para mim, de agora em diante a música
de Caetano Veloso, “Sampa”, inspirada no cruzamento da Ipiranga e a avenida São
João ganha uma triste paródia: a “dura poesia concreta das tuas esquinas”
tornou-se repressão concreta de tuas armas; a “deselegância discreta de tuas
meninas” transmutou-se para estupidez indiscreta das autoridades, do povo
oprimido pela falta de moradia, da propriedade sagrada que expulsa ocupantes,
da feia fumaça que circula as ruas, intoxica, arde. Eu vejo surgir policia por
todos os cantos, mas vejo, em meio às nuvens de gás pimenta, o “possível novo
quilombo de Zumbi”.
Fonte: Outras
Palavras
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