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quarta-feira, 17 de setembro de 2014

O dia em que Marcuse encarou a PM

Retrato da selvageria policial no centro de São Paulo, com um lembrete: não seremos derrotados, enquanto “conseguirmos ficar juntos”

Por Deni Rubbo
Fotos Ponte
16/09/2014

Nas explosões do ano de 1968, o filósofo Hebert Marcuse foi perguntado em uma palestra se se poderia combater o medo com a violência. O autor de O homem unidimensional respondeu que a violência é algo muito perigoso aos mais frágeis. E acrescentou que existem diferentes aspectos de violência com funções igualmente diferentes. Assim, existiriam dois modus operandi que regulam a violência: a violência da agressão e a violência da defesa. Ou seja, existe a violência da polícia, do Exército, da Ku Klux Klan e uma violência de oposição que responde a essas manifestações agressivas de violência.

Hoje em São Paulo, mais de 45 anos depois das palavras de Marcuse o cruzamento da violência da agressão com a violência de oposição cruzaram-se no cruzamento da Ipiranga com a Avenida São João. Trabalhadores, moradores do centro, negros, mulheres, grávidas, crianças e sem teto enfrentaram a violência da sociedade, a violência legal, a violência institucional. Sua violência, a violência dos moradores (sem moradia) foi defensiva. Eles têm razão.

Por volta das dez horas, no cruzamento, aglomeraram-se uma multidão de pessoas e alguns ocupantes da Frente de Luta por Moradia (FLM) que haviam saído do prédio logo após a liminar de reintegração de posse em um hotel abandonado na São João, para observar os próximos movimentos da ação policial. Havia muita indignação. A polícia fez um cordão e não deixou ninguém passar. Depois de alguns minutos, um policial chamou uma das pessoas que ali se encontrava e disse:

– Não queremos entrar em conflito. Só entraremos em ação caso sejamos provocados. Prometemos.

A moradora concordou com o policial, virou-se para o restante do grupo e anunciou:

– Nós não vamos arremessar nada neles, nem pedras, nem paus. Nós nunca damos o primeiro tapa, ouviram? Por favor, vamos permanecer aqui de maneira pacífica.

Todos concordaram, aplaudiram e cumpriram com o prometido.

Quinze minutos depois, a mesma polícia, descumpriu sua promessa e executou a violência da agressão, explicada por Marcuse. Balas de borracha e gás lacrimogênio espalharam-se pelas ruas tão rapidamente que quanto mais se corria, mais elas apareciam. A ardência dos olhos só era um detalhe. Nesse mesmo momento, a televisão transmitia que “vândalos” haviam iniciado a violência e a polícia simplesmente estava retaliando. Curiosamente, graças ao manejo de habilidade linguística da sociedade estabelecida, nunca se chama a violência policial de violência. Por outro lado, com toda facilidade, se nomeia violência à ação dos moradores que se defendem da polícia. Nesse mesmo momento uma mulher grávida caiu na rua, bem ao meu lado. Rapidamente a socorri e então ela me disse.

– Precisamos resistir, eu e ele (o bebê). Precisamos de futuro. Precisamos estar juntos.

Desnorteado, apavorado, em frações de milésimos de segundos, consegui não sei como nem porque lembrar de Eles não usam Black-Tie (Leon Hirzman, 1981) e da cena em que Maria (Bete Mendes), grávida, levava chutes na barriga da polícia. E aquelas palavras, tão fortes, intensas, também me recordaram outra cena de um outro filme, Segunda Feira ao sol (Fernando León de Aranoa, 2002) em que o personagem Sanca (Javier Bardem) é questionado sobre o fracasso da greve que desencadearam e, posteriormente, foi pretexto para sua demissão. “De que adianta? Não conseguiram nada e, além disso, ninguém mais se lembra”. Ele responde: “fizemos que as pessoas soubessem e conseguimos ficar juntos”. Nem ela, nem eu, nem quem estava lá vai esquecer.

Para mim, de agora em diante a música de Caetano Veloso, “Sampa”, inspirada no cruzamento da Ipiranga e a avenida São João ganha uma triste paródia: a “dura poesia concreta das tuas esquinas” tornou-se repressão concreta de tuas armas; a “deselegância discreta de tuas meninas” transmutou-se para estupidez indiscreta das autoridades, do povo oprimido pela falta de moradia, da propriedade sagrada que expulsa ocupantes, da feia fumaça que circula as ruas, intoxica, arde. Eu vejo surgir policia por todos os cantos, mas vejo, em meio às nuvens de gás pimenta, o “possível novo quilombo de Zumbi”.

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