Henrique WELLEN*
O diretor inglês Ken Loach
tornou-se famoso pelos seus filmes que apresentam críticas sociais e conduzem o
expectador a reflexões políticas sobre acontecimentos históricos e suas
implicações na vivência cotidiana. Realizando uma mistura, nem sempre fácil de
produzir, entre uma narrativa dramática e a exposição de temas socialmente
relevantes, mais comuns no gênero documentário, ele consegue, ao mesmo tempo,
distanciar-se de dois extremos: dos filmes estruturados por posturas
naturalistas, assim como daqueles marcados pelo subjetivismo exacerbado.
Contudo, pelo seu constante posicionamento crítico, que não apenas apresenta o
problema, mas instiga à sua superação, alguns críticos de cinema costumam
menosprezar sua obra a partir de termos como “esquemáticos”, “panfletários” ou
até mesmo “didáticos”.
Nesse sentido, alguns de seus
grandes filmes, como “Terra e Liberdade”, “Pão e Rosas” ou “Ventos de
Liberdade”, no lugar de terem seu elevado mérito artístico e histórico
reconhecido, foram tratados por adjetivações pejorativas. O problema é que, em
certa medida, de forma consciente ou não, essas admoestações são motivadas por
uma apologética da ordem social estabelecida, que utiliza a pecha de
“ideológica” para qualquer obra que não se enquadre na suposta neutralidade
estética. Todavia, essas recriminações não produzem impactos negativos na
produção artística de Loach (assim como de Paul Laverty, roteirista que costuma
acompanhá-lo em projetos conjuntos), que permanecem distantes dessa falsa
imparcialidade e que serve funcionalmente na manutenção do status quo.
Em Rota Irlandesa, ao lado de
Mark Womack (protagonista do filme), os dois (diretor e roteirista) são os
principais responsáveis pelo desenvolvimento de uma trama trágica e de grande
relevância social. O filme narra a história de Fergus (Womack), um soldado que,
depois de se aposentar das forças especiais do Reino Unido, vai prestar
serviços para uma empresa de segurança privada no Iraque. Depois retornar a
Inglaterra, o mercenário fica abalado com a morte de Frankie (John Bishop), seu
melhor amigo, que foi por ele convencido a realizar esses mesmos serviços. No
funeral de Frankie, Walker (Geoff Bell), seu ex-patrão, após discursar sobre a
bravura desse soldado, que teria doado a vida para ajudar o povo sofrido de
Bagdá, explica a Fergus que sua morte aconteceu em ataque terrorista na “Rota
Irlandesa”, codinome da estrada mais perigosa do mundo, com 12 km de extensão,
que vai do aeroporto de Bagdá até a Zona Verde, área mais protegida dessa
cidade.
Fergus fica revoltado com a
morte do amigo, que se amplia quando vê Walker, durante o funeral, tentando
recrutar jovens soldados para servir na sua empresa. Esse sentimento de revolta
se transforma, gradativamente, em sede de vingança; e amplia-se quando Fergus assiste
a um vídeo de um celular que ele recebeu de uma amiga estrangeira durante o
velório. Como o celular está em curdo, idioma iraquiano, ele procura um nativo
desse país para ajudá-lo a examinar o aparelho. É assim que ele descobre que o
celular, que lhe foi enviado pelo amigo morto, pertencia a um taxista
iraquiano, que aparece no vídeo sendo assassinado, juntamente com seus filhos,
pela equipe de Frankie. Esse também consta na filmagem guardando o aparelho,
logo depois de reclamar com seu colega Nelson (Trevor Williams) que atirou
covardemente na família inocente.
Se, à primeira vista,
observa-se uma razão para os passos da investigação e da vingança de Fergus, as
imagens desse vídeo funcionam mais como denúncias de uma prática usual do
imperialismo contemporâneo. A existência desse vídeo conduz menos a um enigma a
ser desvendado sobre a morte de Frankie, e funciona mais como exposição das
atrocidades cometidas contra o povo iraquiano. Como os maiores culpados desse
crime já aparecem nas primeiras cenas do filme, inclusive determinando a
cumplicidade do amigo na morte de civis iraquianos, a investigação dos fatos
que conduziram à morte de Frankie serve para demonstrar a ideologia do
personagem principal, que não consegue aceitar que o assassinato do amigo é
resultado de uma operação sistemática, e a encara como uma vingança pessoal de
algum mercenário invejoso ou psicótico.
Diferentemente do padrão de
Hollywood, com a sua produção massificada de filmes de justiceiros, heróis de
tramas individualistas ou de teorias da conspiração que, com seus desfechos
felizes, buscam tranqüilizar os expectadores, no filme de Loach não existe
possibilidade de final feliz. A trama de revanche de Fergus não se encerra em
si, mas serve como fio condutor para o problema central exposto em Rota
Irlandesa: as barbaridades cometidas por soldados e mercenários de países
imperialistas contra povos conquistados. O diretor chama a atenção do público
para esse fato de extrema relevância atual.
Segundo os dados da ONU, em
2007 havia cerca de 130 mil mercenários no Iraque, sendo parte significativa
proveniente de países latino-americanos, com destaque para Chile, Peru,
Honduras e Colômbia. Em vários casos, mesmo depois de deixarem de ser soldados,
esses mercenários são recrutados e treinados por integrantes das forças armadas
nacionais, com o uso das armas dessas instituições. Já nessa época, o problema
tinha contornos tão expressivos que a quantidade desses milicianos se
equiparava à tropa oficial, tendo, ainda, alguns diferenciais: recebem um
salário mais elevado e são mais bem equipados belicamente. Em alguns casos, um
dia de pagamento de um mercenário pode chegar ao salário anual de um soldado
regular.
Em cifras nacionais, essa nova
guarda pretoriana, abocanha quase a metade dos recursos financeiros que o
governo dos EUA gastam no Iraque. E, também no caso dos EUA, existe outra
diferença entre os mercenários e os soldados: se esses precisam responder a
códigos de condutas das forças armadas, aqueles são imunes a processos legais
iraquianos enquanto estiverem a serviço de empresas estadunidenses. Ou seja, se
forem subordinados às empresas que exploram as riquezas do Iraque, esses
milicianos, paradoxalmente, não precisam obedecer às leis desse país. Como
aparece no filme de Loach, a “ordem 17”, sancionada pelo governo Bush, dá
liberdade para os mercenários, que possuem imunidade total. Por isso, nas
palavras do personagem iraquiano: “Eles varrem o país, matando quem quiserem”.
E ainda: “Nós detestamos eles mais que o exército”.
O lucro da partilha do Iraque
também é utilizado para financiar a difusão de elementos culturais e
ideológicos, explícitos ou implícitos, que servem para legitimar essas práticas
brutais e engrossar as fileiras dessas empresas de segurança. Os recursos utilizados
vão desde campanhas publicitárias, palestras e recrutamentos em escolas
(especialmente em bairros mais pobres), até a criação de jogos eletrônicos para
jovens e crianças. Para se ter um exemplo da força de cooptação dessas
artimanhas, basta acessar alguns blogs brasileiros em que, mesmo após
reportagens críticas contra essas práticas, várias pessoas, que, em sua
maioria, se dizem ex-integrantes das forças armadas brasileiras, se oferecem
para ingressar nessas empresas.
Apresentando o comportamento de
Fergus como um caso típico de pessoa que comete essas atrocidades, Rota
Irlandesa serve para problematizar a desmedida do valor da vida. Diante das
práticas que foi adestrado a realizar, Fergus sofre as implicações negativas da
morte apenas quando essa ocorre com colegas, amigos ou alguém de vivência
próxima. Os vários assassinatos cometidos contra povos de países dominados não
produzem impactos semelhantes aos sentimentos de tristeza e, principalmente, de
revolta, que ele tem com o assassinato do amigo.
Na sua perspectiva, o problema
não está no fato de soldados e mercenários matarem ilegitimamente os
iraquianos, mas sim de cometerem atos análogos com seus próprios pares e
conterrâneos. Além dos laços de afetividade com o amigo, a sede de vingança
encontra-se assentada numa hierarquia moral de vidas humanas. Por isso, ao se
referir à família iraquiana morta, pôde afirmar que se trata de “política
padrão de uma empresa estrangeira que achou que vidas estavam em perigo.
Tiveram morte instantânea e foram deixadas na beira da estrada”.
Contudo, como a vida não é
estanque, mas dinâmica, aos poucos o personagem vai se dando conta das suas
limitações. Como uma síntese de determinações entre a sua trajetória individual
e as instituições que ingressou, Fergus é apresentado pela marca do seu tempo
histórico, expressando essa essência histórica nas suas mais íntimas
contradições. Ainda que busque sempre a conotação política, mesmo em filmes com
roteiros menos dramáticos (como em “À procura de Eric”), Loach não produz uma
figuração superficial da realidade. Desta forma, se distancia diretamente de
estilos panfletários ou com vieses deterministas e naturalistas. Se a
contradição existe na realidade social que o envolve, ela também está posta nos
seus personagens, por mais extremo que possa parecer o seu comportamento.
Subjetividade com historicidade, a medida da particularidade como foco para
seus filmes.
Nesse caso, além da revolta, o
sentimento de culpa é despertado, passando a ser também uma fiel companheira.
Dois personagens operam como elemento catalisador dessa dinâmica: Rachel, a
viúva de Frankie, e Harim, o músico iraquiano. Se Rachel representa o
contraponto de humanidade, dentro da sociedade inglesa, Harim conduz
personagens e público para uma realidade pouco vista e sentida, a do povo iraquiano.
Encontra-se em Harim não apenas a crítica humanista contra a barbárie, mas
também a base para o momento de maior catarse estética do filme.
A cena de apresentação do
músico iraquiano, que tem na plateia Fergus e Rachel, é uma mistura de beleza e
sofrimento. Têm início com a explicação da origem de uma música: “Essa canção é
da Mesopotâmia que significa ‘A terra entre os dois rios’ O Tigres e o Eufrates
onde o homo sapiens aprendeu a escrever, contar e nomear as estrelas. Que
antropologistas chama de ‘O berço das civilizações’”, sendo acompanhada por
imagens terríveis no Iraque: adultos e crianças mortos, corpos destroçados
sendo carregados, familiares e amigos em lamento e soldados agredindo
publicamente jovens iraquianos rendidos. Na parte final da cena, sob o foco de
uma mira noturna, ocorrem ordens para tiros e pessoas sendo mortas (inclusive
uma que parece balançar uma bandeira branca). O símbolo de um vídeo game
operado por soldados imperialistas, que destroem vidas humanas como se fossem
alvos virtuais.
Tais situações produzem efeitos
em Fergus que, se de um lado, recrudesce suas práticas de vingança contra os
reais assassinos de seu amigo, por outro lado, começa a pressentir uma revolta
interna contra o absurdo dos seus atos cometidos. Ainda que em escopos
limitados e singulares, seu comportamento transita da culpa à compaixão, e
serve de denúncia do processo vivenciado: “Criminosos filhos da mãe sendo
criados, isso é o que temos sido”. E, ao comentar sobre as torturas cometidas
contra os iraquianos, chega a sentenciar: “É irônico, mas se eles não apoiavam
a Al Qaeda antes, passaram a apoiar depois. Isso eu garanto”.
Seu desfecho trágico cumpre com
os requisitos do realismo. O fato de torturar até a morte um ex-colega de
profissão, praticando o mesmo lema “sem sangue, sem sujeira”, que lhe foi
ensinado pelos soldados dos EUA quando torturam iraquianos, não representa uma
violência gratuita, mas uma conduta verossímil de quem responde a violência com
atos mais violentos. Dominado pela ânsia de uma confissão pessoal para a morte
do amigo, Fergus usa a barbárie como resposta à própria barbárie. E, diante dos
fatos que demonstraram claramente que esse assassinato foi planejado
coletivamente para evitar problemas nos contratos com as grandes empresas, sua
mente entra em colapso, potencializando a brutalidade dos seus atos. A
truculência da vingança animalesca não serve de conforto para Fergus que,
estando num ponto sem retorno, se depara com a sua própria bestialidade. Por
isso, antes do seu final, confidencia
para Rachel que “é melhor abater um cachorro louco antes que ele ataque
alguém”.
Por fim, acreditamos que, se
Rota Irlandesa apresenta alguns limites em termos de historicidade da trama,
isso não o impede de apresentar nuances essenciais do imperialismo
contemporâneo, seja na violência contra os povos reprimidos ou nas implicações
subjetivas nos seus operadores. A obra cumpre, assim, um importante papel da
arte como autoconsciência da humanidade. Para além da precisão artística na
construção da trajetória de seu personagem principal, a relevância estética
desse filme pode ser medida também pelas reflexões que ele é capaz de produzir.
Se Harim, o músico iraquiano, depois de ser torturado pelos mercenários, se
queixa que “eles sempre, sempre escapam”, e que teve “a chance de mostrar como
eles são”, mas não conseguiu, esse papel foi alcançado por Ken Loach.
É um filme que precisa ser
visto, divulgado e debatido, até porque, como afirmou Walter, o grande
empresário dos serviços de segurança privada, o “Iraque é poeira. É hora de
partir para novos pastos”.
Ficha Técnica
Título: Rota Irlandesa
Título original: Route Irish
País: Reino Unido, França, Itália, Bélgica, Espanha
Ano: 2010
Duração: 109 minutos
Direção: Ken Loach
* HENRIQUE WELLEN é professor
da Escola de Serviço Social da UFRJ.