Civis fogem de Mosul, terceira maior cidade iraquiana, conquistada pelo ISIS. Doze anos após invasão norte-americana, pesadelo do país parece não ter fim |
Por Immanuel Wallerstein
19/06/2014
Tradução: Inês Castilho
Parte da população deixa Mosul,
terceira maior cidade iraquiana, conquistada pelo ISIS. Doze anos após invasão
norte-americana, pesadelo do país parece não ter fim
Ameaça do ultra-fundamentalismo
islâmico pode suscitar aliança surpreendente entre Irã e Arábia Saudita, que
transformaria geopolítica da região
Um movimento jihadista,
denominado Estado Islâmico no Iraque e na Síria (Islamic State in Iraq and
Syria, ou ISIS, em inglês), acaba de obter uma vitória impressionante e
arrasadora ao capturar Mosul, terceira maior cidade do Iraque, ao norte do
país. Suas forças prosseguiram para o sul, em direção a Bagdá, e tomaram
Tikrit, cidade natal de Saddam Hussein. O exército iraquiano parece ter
desabado, tendo inclusive cedido Kirkuk aos curdos. O ISIS também aprisionou
diplomatas e caminhoneiros turcos. Ele agora controla efetivamente um grande
pedaço do Norte e do Oeste do Iraque, bem como uma zona contígua no Nordeste da
Síria. Comentaristas têm rotulado esta zona transfronteiriça de Jihadistão. O
ISIS tenta restabelecer um califado numa área tão grande quanto possível, com
base numa versão particularmente estrita da lei islâmica, a sharia.
O choque e o medo que os
sucessos deste movimento têm provocado podem levar a grandes realinhamentos
geopolíticos no Oriente Médio. Geopolítica é uma arena de frequentes surpresas,
na qual conhecidos antagonistas repentinamente reconciliam-se e transformam sua
relação naquilo que os franceses chamam de frères ennemis, inimigos fraternos.
O exemplo mais famoso do último meio século foi a viagem de Richard Nixon à
China para reunir-se com Mao Tsé Tung, uma viagem que serviu fundamentalmente
para rever os alinhamentos dentro do sistema-mundo moderno e desde então serve
de apoio à relação China-Estados Unidos.
Há tempos, a mídia global
enfatiza a profunda hostilidade existente entre a Arábia Saudita e o Irã. Uma
reconciliação parecia improvável. Mas, considerando-se que nos últimos meses
tem havido encontros secretos entre os dois países, pode-se perguntar se uma
surpreendente inversão geopolítica não é iminente.
Sempre que essas reviravoltas
ocorrem, a questão a ser respondida é o que os dois lados ganham com isso. É
necessário que haja interesses comuns que superem as bases conhecidas de
hostilidade. Comecemos pondo de lado um argumento dos analistas para explicar o
antagonismo. Trata-se do fato de que o governo do Irã é controlado por imãs
xiitas e a Arábia Saudita, por uma monarquia sunita. Isso é verdade,
naturalmente. Mas lembremo-nos de que, até 1979, Irã (sob o governo do Xá) e
Arábia Saudita (sob a mesma monarquia sunita de hoje) foram aliados
geopolíticos próximos, e trabalharam juntos na Organização dos Países Exportadores
de Petróleo (OPEP), em todas as questões relacionadas ao preço de petróleo –
uma preocupação central na economia de ambos os países. Só a partir de 1979 o
Irã mudou sua política e teve início o antagonismo público entre os dois, mas
só então.
O ponto fundamental da disputa
pública entre Arábia Saudita e Irã foi a competição pelo domínio geopolítico na
região. O que poderá mudar isso agora é precisamente o levante do ISIS, que
representa grave ameaça a ambos os Estados. O interesse comum aos regimes da
Arábia Saudita e do Irã é a necessidade de uma relativa estabilidade dentro de
seus estados e na região como um todo.
Claro que ambos os regimes são
assaltados por divisões internas entre elementos “liberalizantes” da classe
média urbana e defensores de uma versão estrita e conservadora do Islamismo
tradicional. Mas a ameaça que o ISIS representa para ambos os grupos, em ambos
os países, poderia levá-los a aquietar outros tipos de luta. Existem atualmente
lutas entre diversas forças, que não a do movimento ISIS, acontecendo na Síria,
Líbano, Iraque, Bahrein, Iêmen e outros lugares.
Há, além disso, outros
elementos pressionando por esse tipo de reconciliação. Ambos os regimes
compartilham certa consternação a respeito das intervenções, incertas porém
contínuas, dos Estados Unidos e países europeus em sua região. Os sauditas
perderam a fé na confiabilidade de alianças passadas, e estão chegando mais
perto da visão iraniana de que o Ocidente deveria permitir que as forças
regionais resolvessem suas próprias diferenças. Ambos os regimes estão também
descontentes com o papel constante e um tanto imprevisível do Qatar na região.
E estão descontentes com os impasses que impedem a criação de um Estado
Palestino significativo. Ambos os regimes lançam um olhar atento sobre o regime
militar secular agora estabelecido no Egito. E, finalmente, os dois querem ver
algum tipo de resolução política dos conflitos no Afeganistão.
É uma longa lista de interesses
comuns. Em síntese, eles têm mais em comum do que os analistas externos
frequentemente acreditam. Além disso, se chegarem a firmar um acordo histórico,
o novo arranjo pode atrair um apoio considerável – antes de tudo da Turquia,
mas também, em seguida, dos curdos, do Magreb, da Jordânia, do Paquistão e da
Índia, da Rússia e da China, e até mesmo de dentro do Afeganistão. Claro, isso
é especulação, mas não especulação ociosa. A realidade é que os regimes, tanto
da Arábia Saudita como do Irã, estão preocupados com sua sobrevivência em meio
à crescente desintegração do Oriente Médio. Manter a tendência atual
provavelmente não os ajudará a sobreviver. Eles podem avaliar que é hora de
mudar de rumo.
Fonte: Outras
Palavras
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