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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A força das armas e a ideologia: reflexões sobre a greve da polícia militar na Bahia

Glauber Leal*
         Os acontecimentos recentes decorrentes da greve da polícia militar na Bahia causaram grande comoção pública. O assunto está sendo altamente debatido nas redes sociais e nos veículos de comunicação em todo o país. O clima de insegurança tomou conta das principais cidades do Estado, onde ocorreram diversos saques em massa a lojas e shoppings, os chamados “arrastões”.
            Momentos de agitação política, como este que presenciamos diante de nossos olhos, transformam toda a vida social em um grande laboratório, cujos efeitos nos dão fundamentação empírica para analisarmos com maior clareza a realidade em que vivemos. Dentre os inúmeros aspectos que podem ser discutidos, somente neste caso particular, dois deles serão destacados neste momento. Ambos tratam de grandes forças sociais responsáveis pela manutenção da chamada “ordem pública”, para ser mais específico, pela conservação do status quo, das desigualdades entre as classes, da exploração do homem pelo homem, enfim, de toda vida social – como ela se encontra neste momento. Estas duas grandes forças conservadoras são: a força das armas e a da ideologia.
            A simples ausência da polícia militar fez com que, em poucos dias, muitas pessoas se sentissem à vontade para cometer qualquer tipo de delito, dentre eles, o chamado crime contra a propriedade. Mesmo antes do início da greve, este gênero criminal já era bastante praticado. Num relatório elaborado pelo Ministério Público de São Paulo[1], foram computadas mais de um milhão de denuncias, realizadas entre 2002 e 2009. Somente neste último ano, os crimes de roubo, furto e estelionato atingiram 57% dos principais delitos cometidos no Estado. Em contrapartida, estupro e homicídio doloso, classificados entre os crimes contra pessoas, atingiram a estatística de 7,18%.
            A polícia militar se apresenta como a grande guardiã da propriedade privada. Possui, antes de tudo, a função social de protegê-la. Contribuir para a conservação da distribuição desigual das riquezas produzidas socialmente. Desta forma, permanece restrito o acesso das mercadorias produzidas pelos trabalhadores apenas àqueles indivíduos habilitados a adquiri-las, a depender do valor de sua renda. Todos os indivíduos buscam por estas mercadorias como meio de atender às suas necessidades, sejam elas básicas ou secundárias.
            Apesar do incrível desenvolvimento histórico das sociedades humanas, seus membros não abandonaram sua condição animal, e como tal precisam atender às suas necessidades orgânicas dia após dia. Precisam de comida e abrigo, por exemplo. E uma vez saciadas as necessidades básicas, surgem outras, que podem ser diferentes para cada indivíduo. Possuir um carro, televisão, livros, realizar atividades de lazer. Para atender estas necessidades, os seres humanos transformam a natureza em sua volta, através de seu trabalho consciente.
            Na sociedade capitalista estes bens assumem a forma de mercadorias, que podem ser trocadas por outras no mercado através da mediação do dinheiro. Este, por sua vez, assume a função de mercadoria universal que pode ser facilmente trocada por qualquer outra. Entretanto, para a grande maioria das pessoas, a única forma de adquirir dinheiro é vendendo seu trabalho para terceiros ou prestando algum tipo de serviço autônomo. Por motivos que não cabem abordar neste texto, uma grande parte dos indivíduos não recebe um salário suficiente para atender todas as suas necessidades, sequer as mais básicas em grande parte dos casos.
            A grande incidência dos crimes contra a propriedade é reflexo desta situação, e a ausência da polícia nas ruas abriu espaço para que estes crimes pudessem ser realizados abertamente, como vimos nos “arrastões” que ocorreram em várias das cidades baianas. Lógico que não se trata de defender a barbárie, mas sim de tentar entendê-la. Evidentemente que os saques não são o caminho para mudar a situação desigual do capitalismo. Apenas uma mudança estrutural do nosso modelo de sociedade poderá eliminar os efeitos das desigualdades sociais, tal como vemos agora.
            É igualmente verdadeiro que a ausência da polícia também contribuiu para o aumento da violência generalizada, uma vez que, oficialmente, o Estado possui o monopólio das armas. Entretanto, a polícia não é a única força capaz de inibir a ação criminosa. Na França, em 1871, por exemplo, durante a guerra franco-prussiana, o Estado francês se tornou incapaz de dar soluções aos problemas sociais acentuados durante o conflito militar. Diante desta situação, a população de Paris decidiu tomar o controle da cidade, assumindo, dentre outras coisas, a segurança pública. A polícia profissional foi extinta, e a população organizada, sob a posse das armas, uma vez que se encontrava em guerra, passou a combater os crimes, que caíram significativamente[2].
            Desta forma, se revela a função social essencial da polícia, a saber, garantir a reprodução ampliada da propriedade privada. Assim se assegura a perpetuação da sociedade humana sob sua forma capitalista. A força das armas não é uma forma de remediar a luta de classes, ao contrário, é um mecanismo de manutenção destes conflitos gerados pelas desigualdades sociais.
            Evidentemente que a força das armas não é o único mecanismo de preservação da ordem capitalista. A ideologia joga um papel de igual importância neste sentido. Para garantir a conservação da sociedade tal como está, é preciso que o conjunto dos indivíduos seja convencido de que não existe uma forma melhor de preservar a vida humana, que o sofrimento é inevitável ou que as pessoas são incapazes de se libertar dos valores individualistas típicos do sujeito burguês. Seja através da religião, da mídia reacionária ou de teorias científicas conservadoras, a ideologia dominante é reproduzida de forma a mistificar as relações sociais, desviando a atenção dos indivíduos dos problemas centrais.
            É lugar comum afirmar que os trabalhadores se encontram em um estado de alienação tão profundo que nunca seriam capazes de lutar efetivamente por seus interesses de forma a saírem vitoriosos. Ora, de fato esta afirmação não é completamente falsa. No atual estado de consciência dos indivíduos, uma transformação radical da sociedade não será possível. Entretanto, restringir-se a esta afirmação é enxergar a realidade apenas na forma de sua aparência externa, tal como ela se apresenta neste momento.
            Todavia, nada garante que seja impossível haver um salto de consciência por parte dos trabalhadores, e esta greve da polícia é um exemplo factual disso. Quando se tratou de um problema que atingiu diretamente a vida da grande maioria das pessoas, de uma forma tão urgente quanto esta, gerada pela falta de policiamento nas ruas, todos passaram a se manifestar abertamente. Em menos de um mês, centenas de discussões foram realizadas nas redes sociais, nas ruas, em casa e nos locais de trabalho. Todos tiveram a chance de amadurecer suas opiniões e aprender bastante com as posições de outras pessoas. Todos, de alguma forma, tiraram uma lição disso tudo, o que lhes dará fortes elementos para uma interpretação mais consciente da realidade. Um mês bastou para que pudéssemos observar o quanto as pessoas são capazes de se envolver com problemas tão sérios, chegando a manifestar publicamente suas indagações.
            Quando imaginamos que períodos de lutas massivas podem durar longas décadas, nos perguntamos o quanto a consciência dos indivíduos pode se elevar em um períodos de cinco a dez anos de agitação política. O quanto estes indivíduos não podem aprender tomando a responsabilidade de dar respostas positivas aos problemas enfrentados pela humanidade. Aprendendo na prática com seus próprios erros, uma vez que se lançam num processo de lutas políticas por melhores condições de vida, diante de uma sociedade onde pessoas morrem de fome todos os dias, apesar de toda a abundância de riquezas tornada possível após a expansão da Revolução Industrial.
*Graduado em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.

[1] Disponível em: http://www.conjur.com.br/dl/relatorio-dados-2002-2009-ministerios.pdf. Acesso em 06 de fevereiro de 2012.
[2] Este episódio ficou conhecido como a Comuna de Paris. Para saber mais ler: MARX, Karl. Guerra Civil na França. In: MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, S/D.

Um comentário:

Anônimo disse...

Belo texto!!! Uelber B. Silva