Programa da Fifa
em parceria com três ministérios ensina hábitos “saudáveis” em escolas
públicas; especialistas consideram o conteúdo, a concepção de promoção à saúde
e de currículo um retrocesso
Por Cátia Guimarães
Da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – EPSJV – Fiocruz
25/03/2014
Quando
as manifestações nas ruas gritaram que, em vez de Copa, queriam mais saúde e
educação, talvez não soubessem que a Federação Internacional de Futebol (Fifa)
está atuando também nessas áreas.
Continuando
uma ação iniciada na África do Sul, em 2010, com o objetivo de deixar um
“legado médico” para o país, a Fifa está promovendo no Brasil o programa “11
pela saúde”, que visa “ajudar os jovens” do país a “viver uma vida saudável”.
Legitimado
por uma parceria dos ministérios da Saúde, Educação e Esportes, o programa
apresenta conteúdos de saúde e abordagens educacionais que, segundo diversos
especialistas, vão na contramão das políticas e das demandas da sociedade civil
organizada no Brasil.
“A
parceria com a Fifa está dada no âmbito de todos os demais ministérios.
Trabalhar na perspectiva de ter legados para a saúde e a promoção se colocar
como um desses legados é importante para o ministério da Saúde e para o governo
brasileiro”, explica Débora Malta, coordenadora geral de vigilância de agravos
e doenças não transmissíveis do Ministério da Saúde, responsável pela
articulação com o programa.
No
entanto, Carlos Eduardo Batistella, professor-pesquisador da Escola Politécnica
de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que estuda currículo, principalmente
na área da saúde, discorda: “É de estranhar que os Ministérios da Saúde e da
Educação não tenham obstado essa iniciativa, uma vez que a construção de
políticas de saúde e educação no país já nos autoriza a considerar que não
precisamos de auxílio iluminado para estabelecer um ‘programa de educação séria
sobre saúde’, como anuncia a Fifa no material do programa”.
Minutos
e conteúdo contados
O
“currículo” do programa é dividido em 11 sessões que associam um tema sobre
futebol a uma mensagem sobre saúde, cada um trabalhado em 45 minutos,
representando dois ‘tempos’ de uma partida de futebol.
No
Brasil, uma versão-piloto do programa foi aplicada em Curitiba e agora esses
professores estão treinando os outros. O material de referência é o Manual do
Treinador, que orienta detalhadamente o professor sobre cada atividade que ele
deve desenvolver com os alunos, determinando inclusive o número de minutos que
cada etapa deve levar.
“O
grau de prescrição de comportamentos chega a níveis absurdos, em que se propõe
a criação de ‘círculo de elogios’ e a ‘lista de controle’ determina cada passo
da preparação das sessões, seus tempos e movimentos”, analisa Batistella. O
destino final dessas mensagens de saúde são alunos de 11 e 12 anos de escolas
públicas das cidades-sede da Copa do Mundo do Brasil.
“A
simples denominação do material como ‘Manual do Treinador’ já nos remete a duas
questões bastante críticas no campo da educação: de um lado, assume uma
perspectiva de forte diretividade, já que o uso do termo ‘manual’ quer
restringir a atividade docente à mera implementação de um currículo prescrito,
negligenciando a ação pedagógica como possibilidade de reconstrução de
conhecimentos e sentidos. De outro, transparece uma visão de educação como
adestramento, numa perspectiva comportamentalista que, nos últimos anos, tem
sido reanimada – com nova roupagem – pela pedagogia das competências”, critica
Batistella.
Colonização
A
mensagem mais polêmica – embora não seja a única – é a que, junto com o uso de
camisinha, indica a abstinência sexual e a fidelidade como formas de prevenção
ao HIV/Aids.
O
Ministério da Saúde garante que, na revisão que fez do material utilizado na
África, retirou essas orientações. Débora reitera que a política brasileira
investe apenas na prevenção por meio de preservativos. Mas o fato é que elas
permaneceram na versão final do Manual do Treinador, utilizado para treinar os
professores que, por sua vez, reproduzirão com os alunos o conteúdo e a
dinâmica didática que aprenderam.
Perguntada
sobre o que uma instituição que tem essa concepção de promoção e prevenção à
saúde tem a ensinar às crianças brasileiras, a coordenadora do Ministério da Saúde
afirmou que “toda parceria é bem-vinda” e legitimou o conhecimento técnico da
Fifa nessa área. “O mote da Fifa realmente é o futebol, mas ela se valeu de
especialistas. Ela tem discutido isso com a OMS (Organização Mundial de Saúde)
há anos. O desenho está de acordo com os eixos da OMS na priorização das
doenças crônicas não transmissíveis”, diz.
Para
Batistella, a interferência da Fifa em ações de educação e saúde tem objetivos
bastante específicos: “Numa época em que todo mundo educa, a Fifa aparece como
a nova candidata ao posto de instituição educadora aos países subdesenvolvidos.
Por trás da aparente benevolência dos países centrais, repete-se o velho
mecanismo de colonização que já acompanhou a Europa na invenção do Oriente: o
recurso ao estereótipo, a padronização de condutas servis, a disseminação de
valores desejados para a manutenção do sistema”.
Mudança
de comportamento
Especificamente
em relação ao conteúdo de saúde do programa, a primeira crítica mais geral diz
respeito à própria concepção de promoção da saúde que o sustenta, focada numa
estratégia de informação para mudança do comportamento individual.
De
acordo com Paulette Cavalcanti, pesquisadora do Centro de Pesquisas Aggeu
Magalhães (CpqAM/Fiocruz Pernambuco), tem-se lutado, no Brasil, por uma prática
de promoção que seja coerente com o conceito ampliado de saúde. “Não é possível
produzir carros sem se pensar na promoção da saúde, tocar uma fábrica de
alimentos sem se pensar na quantidade de sal e outras substâncias que vão ser
utilizadas”, exemplifica, lembrando que a diminuição do sal dos alimentos é uma
ação muito mais estrutural para o controle da hipertensão do que a
administração de medicamentos àqueles que já se tornaram hipertensos. Paulette
explica que a grande referência mundial é a Carta de Ottawa, de 1986, que
apresenta cinco eixos principais para essa concepção de promoção à saúde.
“Apenas um eixo fala da mudança de comportamento. Mas o Brasil está elegendo
exatamente esse para ser o principal”, diz. Todos os outros – criação de
ambientes saudáveis, reforço da ação comunitária, reorientação dos serviços de
saúde e um olhar para o futuro – dizem respeito à participação do Estado e da
sociedade.
Água engarrafada
Na
cartilha da Fifa, esse problema aparece, por exemplo, no tema do saneamento,
presente na sessão ‘Beba água tratada’ que, segundo Alexandre Pessoa,
engenheiro sanitarista e professor- -pesquisador da Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), não só dá destaque como incentiva, em uma das
“mensagens-chave”, o uso de água engarrafada.
“Essa
abordagem trata os recursos hídricos como mercadoria, desconsiderando todo o
debate sobre a universalização do direito à água. Ao se naturalizar o uso de
água engarrafada como referência de água tratada, está-se ignorando que é
obrigação do Estado fornecer água em quantidade e qualidade necessárias para o
consumo humano”, diz. Alexandre considera também injustificável que, com toda a
importância que a questão ambiental tem nos dias de hoje, um programa de
promoção à saúde não aborde em nenhum momento a importância do uso racional da
água.
Fora de contexto
Ana
Lucia Pontes, médica e também professora-pesquisadora da EPSJV/ Fiocruz, faz o
mesmo debate em relação à sessão ‘Controle seu peso’. Segundo ela, a cartilha
ignora que o que as comunidades de baixa renda, muito presentes nas escolas
públicas em que esse programa está sendo aplicado, têm à sua disposição são
alimentos de baixa qualidade nutricional.
“Não
é um questão de escolha, como o programa faz parecer”, diz. Ela destaca um
trecho da cartilha que afirma que não se precisa ser rico para seguir uma dieta
equilibrada, já que frutas, legumes e carboidratos seriam mais baratos do que
os alimentos ricos em gordura e açúcar.
“Essa
é a grande ironia do momento atual. Os alimentos orgânicos, que são livres de
agrotóxicos, por exemplo, são os mais caros. As pessoas não podem plantar seus
próprios alimentos e, em função da vida atribulada, desaprenderam a preparar
alimentos que antes eram feitos em casa e a solução são os produtos
industrializados. Na prática, nas condições urbanas de vida no Brasil, para se
alimentar bem, tem que ser rico sim”, discorda.
O
foco do papel do indivíduo na promoção à saúde fica evidente também, segundo a
pesquisadora, na ausência de qualquer referência à propaganda de alimentos – já
que as crianças, que são o público do programa, são uma das mais afetada pela
publicidade que incentiva o consumo de refrigerantes, biscoitos, comidas de
fast food e tantos outros alimentos nada saudáveis.
Para
Ana Lucia, a abordagem desse tema com crianças seria também uma ótima
oportunidade para ensiná-las a ler a tabela nutricional, o que, mais do que
prescrever comportamentos, permitiria que elas participassem da escolha e da
decisão sobre os alimentos mais saudáveis. Mas a cartilha não faz qualquer
referência a isso. Bastistella conclui: “O que o currículo da Fifa ensina é o
conformismo, a obediência e o individualismo, valores e atitudes esperadas ao
papel de subordinação que se destina às crianças pobres nestes países”.
Destacando
o mesmo tom comportamental da perspectiva de promoção à saúde do programa da
Fifa, Alexandre Pessoa aponta, por exemplo, a ausência de qualquer discussão ou
mesmo informação sobre o “caminho das águas” no conteúdo sobre saneamento. “Não
se apresenta esse bem em todas as suas etapas, o que implicaria falar sobre a
proteção dos mananciais, o combate à perda de água no transporte, o cuidado com
a caixa d’água para daí chegar à filtração, entendendo que a fervura é o último
recurso”, diz. E completa: “O programa tem uma abordagem comportamentalista
normativa e, consequentemente, culpabilizadora. Ao fim e ao cabo, se algo não
deu certo, a culpa é do indivíduo”. (Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio – EPSJV – Fiocruz)
Fonte:
Brasil
de Fato
Nenhum comentário:
Postar um comentário