Aaron Swartz (1986-2013) |
Se o suicídio de Aaron Swartz nos permite refletir sobre os
destinos da internet, das pesquisas científicas, da propriedade intelectual,
permite ainda mais pensar sobre uma sociedade que não pode mais esperar pela
definição de suas alternativas futuras.
Há 13 anos a Editora Expressão
Popular vem contribuindo para a batalha das ideias e para o fortalecimento da
cultura socialista em nossa sociedade. Nossa contribuição só foi possível por
contarmos com a solidariedade e o compromisso de mais de 300 companheiros e
companheiras que se juntaram a nós e fizeram/fazem parte deste processo através
da cessão de direitos autorais, de trabalhos de revisão, editoração,
diagramação, divulgação etc. Seguimos firmes nesta batalha e estamos buscando
travá-la cada vez co mais afinco e em mais frentes. Neste sentido, estamos
inaugurando em nosso site a seção “Batalha das ideias”, na qual publicaremos
textos de intervenção e de combate, com vistas a fortalecer a cultura
socialista em seu mais amplo espectro. Primaremos por conteúdos que estejam
para além tanto das discussões do que Antonio Gramsci bem definiu como “pequena
política” quanto dos debates estritamente acadêmicos.O intuito desta iniciativa
é apresentar de modo mais dinâmico temas que contribuam para uma melhor compreensão
da nossa sociedade hoje com vistas a transformá-la, através de textos que
recuperem os aspectos atuais do pensamento clássico da classe trabalhadora.
Na instigante edição desta
semana, Tarso de Melo parte de Karl Marx para comentar o suicídio do jovem
Aaron Swartz, morto nos Estados Unidos após ser processado por enfrentar o
lobby da propriedade intelectual.
O que resta do Reno: de Marx a
Aaron Swartz
por Tarso de Melo
Nos meses finais de 1842, um
jovem redator da Gazeta Renana, Karl Heinrich Marx, assistiu à transformação de
uma prática tradicional dos habitantes mais miseráveis de sua região em crime:
as florestas locais passaram a ser consideradas propriedades privadas e, daí em
diante, pegar os galhos das árvores, mesmo já caídos, passava a ser considerado
roubo.
Marx acompanhou de perto e
discutiu em detalhe os argumentos dos legisladores e interessados, tendo
escrito uma série de 5 artigos sobre o tema, hoje conhecidos como “Debates
sobre da lei de furto de madeira”.
O ponto alto do debate diz
respeito à possibilidade de comutar a pena de prisão em prestação de trabalho
sob as ordens do proprietário, em que Marx identifica “o uso da lei como
ratoeira”, porque o dono da lenha passa também a ser dono da força de trabalho
daqueles que, em razão da miséria extrema, “roubem” a lenha. Com este
mecanismo, aquela conduta que parecia indesejada passa a ser vantajosa para o
proprietário da floresta. Marx percebe aí que esta é a forma habilidosa de o
interesse privado ser plenamente satisfeito: ao fim do circuito, o crime (do
miserável) gera lucro (ao proprietário)!
A história toda é longa,
complexa e a relação com a obra posterior de Marx é polêmica, mas o próprio
autor reconhece, no famoso prefácio da Contribuição à crítica da economia
política (1859), que os conflitos que observou na Gazeta Renana (cerca de dez
meses entre 1842 e 1843, até que o jornal foi fechado pelo governo da
Prússia...) foram determinantes para suas investigações práticas e teóricas
migrarem de vez para a Economia Política.
Daí em diante vocês conhecem a
história: a barba daquele redator cresceu muito, ficou branca, enquanto ele
mergulhava nas entranhas dos mecanismos de reprodução da sociedade burguesa,
desvendando-os um a um.
Lembrei-me desse texto de Marx
a propósito do suicídio recente de um outro jovem impetuoso: Aaron Swartz
(1986-2013). Não, não vou tentar convencer o leitor de que perdemos um novo
revolucionário, nem comparar o jovem ativista digital ao filósofo alemão (que
também enfrentou perseguições policiais e judiciais, mas insistiu em continuar
vivo, bem vivo), mas a figura de Aaron – não obstante a pompa de Harvard – pode
ser comparada à do pobre habitante do Reno que se viu proibido de retirar lenha
da floresta.
No caso observado por Marx,
restava aos miseráveis dobrar-se à lógica da propriedade privada: não basta
sentir frio para fazer uso da lenha, deve-se trocar algo por ela, nem que seja
sua liberdade. No caso de Aaron Swartz, é aquela mesma lógica que submete todos
os demais valores à satisfação do interesse privado, obstáculo, por definição,
à circulação livre da informação.
Com muita lucidez, Aaron
escreveu: “Informação é poder. Mas, como todo poder, há aqueles que querem
mantê-lo para si mesmos. A herança inteira do mundo científico e cultural,
publicada ao longo dos séculos em livros e revistas, é cada vez mais
digitalizada e trancada por um punhado de corporações privadas. Quer ler
publicações com os resultados mais famosos das ciências? Você vai precisar
enviar enormes quantias para editoras como a Reed Elsevier”.
Nesta e em outras passagens do
seu manifesto “Guerilla Open Access” (2008), por meio do qual incita os
usuários da rede a subverterem a lógica privada da circulação de informação,
Aaron não deixa transparecer qualquer intuição que pudesse ter de que, dali a
alguns anos, seria “suicidado” sob a ameaça de uma condenação judicial pesada
(prisão e indenização, tal qual na lei do furto de madeira de 1842!) por ter
baixado e distribuído livremente artigos científicos sem pagar o preço exigido
pelos... proprietários!
Aaron, se estivesse em 1842,
não concordaria com a ideia do proprietário da floresta ter toda a lenha para
si, mesmo que não precisasse dela, e por conta disso subjugar todos os demais
aos seus interesses particulares; e usaria sua habilidade espetacular de cortar
e carregar lenha para ajudar todos aqueles que, proprietários ou não,
precisassem se aquecer. Simples assim: você precisa, você tem. Se é vital, é
para todos. Pobre Aaron, aprendeu tudo sobre computadores e generosidade, mas
faltou às aulas de crítica da economia política!
Em meados do século 19 ou no
início do nosso século, o conflito se dá nas mesmas bases: tudo, absolutamente
tudo aquilo de que necessitamos – venha da natureza ou do engenho humano – é
coberto pelo manto da propriedade privada e, assim, a sua fruição fica restrita
a quem puder pagar. E mais: tentar criar alternativas à troca mercantil será
sempre punido de forma exemplar.
Seria exagero, talvez, afirmar
que o debate relativo à propriedade do conhecimento em nossa época tem o mesmo
peso do debate sobre a propriedade da lenha para um miserável castigado pelo
frio na região do Reno, mas lá e cá estamos diante de situações exemplares. É o
capitalismo impondo, sem cerimônia, a sua lógica excludente, barrando as
necessidades e potencialidades humanas diante de suas chances de serem
atendidas e realizadas.
Se o suicídio de Aaron Swartz
nos permite refletir sobre os destinos da internet, das pesquisas científicas,
da propriedade intelectual, permite ainda mais pensar sobre uma sociedade que
não pode mais esperar pela definição de suas alternativas futuras. Ao
restringir a liberdade da internet, ao fechar toda e qualquer informação no
casulo da mercadoria, os proprietários da floresta de que dependemos mantêm o
controle sobre os rumos dessa definição – o que vai muito além da internet e
invade nossas vidas em seus aspectos menos virtuais, como as pesquisas sobre
saúde, educação, energia etc.
Resta esperar que a morte do
lenhador não tenha sido em vão.
*Tarso de Melo (1976) é
escritor e advogado, mestre e doutor em Direito pela FDUSP, professor da FACAMP
e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Direito de São Bernardo do
Campo. É um dos coordenadores da coleção Direitos e Lutas Sociais (Dobra/Outras
Expressões).
Fonte: Expressão Popular
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