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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A ilusória emancipação por meio da tecnologia

Ilustração: Bennet

Recentemente, máquinas eletrônicas capazes de produzir objetos, tornaram-se acessíveis ao grande público. Elas suscitam paixões no seio de uma vanguarda, que enxerga na nova tecnologia o fermento de uma nova revolução industrial. Porém, essas ferramentas raramente são apresentadas no contexto que as viu nascer.

por Johan Soderberg*
07 de Janeiro de 2013

Esta seria a revolução industrial do século XXI: ferramentas permitem a partir de agora fazer em casa objetos que anteriormente tinham de ser comprados em lojas.1 Corte a laser, impressoras 3-D, máquinas de fresar com comando digital... essas máquinas seguem o mesmo princípio tecnológico: guiar os movimentos de um dispositivo mecânico com o auxílio de um software. As mais famosas entre elas funcionam como impressora, mas em três dimensões: passagem após passagem, um bocal se desloca em três eixos e sobrepõe camadas de material (geralmente uma resina sintética), seguindo um modelo digitalizado até obter o volume desejado. Do puxador da porta à bicicleta, os objetos assim produzidos se multiplicam.

Apesar de essa tecnologia dar ensejo a uma abundância de pequenas empresas inovadoras, seu desenvolvimento é essencialmente trabalho de amadores, que se definem como makers[fazedores]. Enraizados no mundo do software livre, eles aplicam seus valores e práticas aos mecanismos de produção. Para os mais radicais, a reapropriação das ferramentas pela população abriria caminho para uma “democratização” da produção industrial, tendo em mira a abolição da sociedade de consumo. Outros esperam reduzir os custos do trabalho e, assim, tornar obsoleto o movimento de deslocalização [outsourcing] da produção industrial para os países do Terceiro Mundo.2 Esse ponto de vista, mais próximo dos círculos de negócios, é particularmente expresso pela revista especializada Make[Fabrique], que, entre outras atividades, organiza a cada ano a “feira do maker”, em várias cidades importantes dos Estados Unidos.

No entanto, é suficiente andar pelos corredores desse salão para constatar uma certa dissonância no seio da revolução anunciada. Entre as numerosas atrações propostas em sua edição de 2011, em Nova York, era possível visitar a Print-Village [Vila da Impressão]: cerca de vinte estandes dedicados à impressora 3-D Rep-Rap e a seus muitos derivados (emblema desse movimento, a Rep-Rap é capaz de imprimir a maior parte de seus componentes, e pode assim se “autorreplicar”).



Detectar trabalhadores preguiçosos

Não muito longe dali, um pavilhão bem mais imponente propunha várias exposições em torno de máquinas de controle digital (CNC) sofisticadas. Orgulhosamente ostentando as três cores da bandeira norte-americana, um estande se destacava: o da aliança de artesãos americanos (AAM), membro do sindicato de trabalhadores do aço United Steelworkers (USW). Ali, os visitantes eram estimulados a defender os empregos, comprando produtos nacionais. Uma recepcionista, que distribuía broches com os dizeres “Fabrique-os nos Estados Unidos”, teve de admitir a ironia que havia no fato de ela estar naquele pavilhão. Na verdade, as máquinas expostas no estande vizinho eram as descendentes diretas de uma tecnologia que permitira a destruição dos empregos industriais.

Foi no contexto da Guerra Fria que surgiram as máquinas CNC. Seu desenvolvimento, explica o historiador David Noble,3 foi financiado em parte por contratos militares. Essencial na rivalidade com o sistema soviético, essa tecnologia também tinha por objetivo desarmar um inimigo interno: os sindicatos militantes, que tiravam sua força do conhecimento detido pelos trabalhadores. Conforme descrito sem rodeios por Frederick W. Taylor em seu Princípios da gestão científica de empresas, publicado em 1911, “o gestor assume [...] a tarefa de compilar todo o conhecimento e as habilidades tradicionais, que no passado pertenceram aos trabalhadores; classificar, indexar e reduzir esse conhecimento a um conjunto de regras, leis e fórmulas que vão constituir uma grande contribuição para os trabalhadores na realização diária de suas tarefas”. As páginas anteriores a essa passagem descrevem diferentes métodos pelos quais os trabalhadores poderiam enganar os empregadores, fazendo-os acreditar que estavam trabalhando a toda velocidade.

Para detectar os funcionários preguiçosos e desonestos, Taylor propunha a criação de um índice de desempenho médio, que serviria de ponto de comparação. Mas os engenheiros necessários para medir a produtividade eram caros, e os trabalhadores rapidamente aprenderam a enganá-los também... No entanto, a conformidade prometida pela reorganização do trabalho poderia ser obtida de outra forma: incorporando o controle à maquinaria. No início do século XIX, o matemático britânico Charles Babbage tinha preparado – depois de observar numerosas áreas da indústria – um catálogo de mecanismos engenhosamente concebidos para garantir a honestidade dos empregados domésticos e trabalhadores, na ausência de seu mestre, e ostentava “uma vantagem notável das máquinas”: a “supervisão que elas exercem sobre a desatenção, a negligência e a preguiça do homem”.4 Esse é o mesmo Babbage que mais tarde seria chamado de “pai do computador”, porque imaginou as primeiras máquinas de calcular, aí incluída a “máquina analítica”, que usava os mesmos cartões perfurados que iríamos encontrar um século depois nas máquinas CNC.

“Toda a dificuldade da automação”, assinala Noble, “é tornar a máquina-ferramenta autônoma – isto é, capaz de seguir as instruções especificadas pela gestão sem a intervenção de operários – sem comprometer sua indispensável versatilidade. [...] Daí o papel da programação, que permitia, pelo uso de softwares variáveis, modificar um produto sem depender de operadores para transformar a ferramenta ou ajustar sua configuração.” Os engenheiros viram chegar mais perto seu sonho quimérico de uma fábrica totalmente automatizada. Motivações adicionais impulsionavam o desenvolvimento de máquinas de comando digital: a necessidade de fabricar peças que não poderiam ser facilmente construídas à mão, o desejo de aumentar a produtividade e as perspectivas de se abrir à realização de visões tecno-utópicas dos pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), principais desenvolvedores de softwares e hardwares. No entanto, argumenta Noble, havia outras pistas, cujas consequências para os trabalhadores poderiam se mostrar muito diferentes, mas que foram descartadas de propósito.5

É preciso uma ocultação da história industrial dessas ferramentas para autorizar as divagações que rodeiam a promoção comercial da impressora 3-D MakerBot, e segundo as quais essa “revolução” permitirá aos trabalhadores norte-americanos demitidos reencontrar um emprego criativo e inovador convertendo-se de novo em makers independentes. Talvez a fabricação individual lhes permita, de fato, retomar o contato com o know-how e a criatividade. Mas isso é esquecer que os empregos nas fábricas nem sempre foram embrutecedores. E, paradoxalmente, foi essa mesma tecnologia – que, segundo alguns, contribuiria para reintroduzir profissões na competência da economia – que tornou o trabalho nas fábricas tão desmoralizante.

Os makersnão são os herdeiros do movimento operário – são antes o resultado histórico danegaçãodesse movimento. Assim, uma série de figuras bem conhecidas do movimento maker vem do MIT, o instituto que desempenhou papel fundamental na criação das máquinas CNC. Essa raiz histórica aparece como uma “repressão” do movimento: uma memória que ressurgiu em diferentes formas discordantes, desarticuladas, traumatizadas. Uma prova é o investimento estético do qual são encarregadas, de maneira quase obsessiva, as paisagens de ruínas e os terrenos industriais. Detroit, a antiga capital norte-americana do automóvel, transformou-se a contragosto em símbolo da desindustrialização. Esse lugar aparece o tempo todo na revista Makee nos blogs desse movimento.6

Essa digressão na história da produção é uma reminiscência daquela da propriedade intelectual nas grandes empresas. Depois de ter descascado muitos relatórios de processos envolvendo empregadores e empregados sobre a questão da propriedade das ideias, a jurista Catherine Fisk foi capaz de colocar em evidência um mesmo tipo de deslocamento do conhecimento. Até o início do século XIX, não havia nenhuma dúvida de que todas as invenções que emanavam do trabalho dos operários pertenciam a estes últimos. O conhecimento adquirido no local de trabalho estava à disposição deles quando postulavam outro emprego. As tentativas dos patrões de se tornarem proprietários das faculdades mentais dos trabalhadores livres, competentes e, sobretudo, brancos eram frequentemente rejeitadas pelos tribunais: essa exigência era semelhante à escravidão. Mas, quando o conhecimento se tornou codificado, a relação de forças começou a se inverter em favor das empresas, que, nos tribunais, conseguiram se apropriar completamente das ideias dos funcionários.7

O movimento atual de experimentação de abordagens alternativas ao direito autoral – um software livre para o compartilhamento das obras artísticas em “creative commons” – se inscreve nesse contexto da história do trabalho. Alguns pesquisadores estão preocupados com os efeitos potencialmente desastrosos das plataformas de trabalho abertas que poderiam, em alguns casos, levar os trabalhadores à autoexploração − uma profecia que se realiza, por exemplo, em certas empresas que se baseiam no modelo do “apelo à multidão” (crowdsourcing) para analisar ou constituir dados.8 O rendimento médio de um “empregado” do site de crowdsourcing da Amazon, por exemplo, que consiste em identificar objetos ou pessoas em fotografias, se elevaria a US$ 1,25 por hora!9

Redução dos salários

A importância das impressoras 3-D deve ser considerada nesse contexto, em especial na medida em que seus promotores pretendem mudar o mundo do trabalho. Os makersestão realmente planejando “linhas de produção”, formadas pela colocação em rede de um parque de máquinas individuais apoiadas na mesa da cozinha de trabalhadores informais. Não haveria aí o risco de desencadear uma queda maciça dos salários na indústria? O instigador do projeto “Rep-Rap”, Adrian Bowyer, que impulsionou o boomdas impressoras 3-D, teoriza que “não seria uma má notícia para os trabalhadores, pois eles não precisariam mais comprar tantos produtos nas lojas”.10 Essa é a questão de uma luta social para a redistribuição da riqueza em um futuro no qual a fabricação digital será distribuída entre a população. A contestação da distribuição da riqueza se desloca, indo da produção para os consumidores, e para as ferramentas colocadas à sua disposição. Mas o design dessas ferramentas é tema do mesmo tipo de confronto que a CNC enfrentou nas fábricas em sua época.

Enquanto alguns makersabraçam os ideais de uma produção solidária, empresários, investidores e advogados de propriedade intelectual colocam todo seu peso no desenvolvimento de máquinas que correspondem a uma visão diametralmente oposta. Eles planejam produtos “prontos para imprimir”, que serão comprados como bens de consumo; a própria máquina só poderá fabricar objetos previstos no catálogo. Mais uma vez, a propriedade intelectual se encontra intimamente ligada à questão da remuneração, mesmo que sua história de conflitos tenha sido reprimida tanto no movimento makerquanto nas reflexões sobre software livre. Será preciso voltar à declaração dos direitos tecnológicos dos trabalhadores, proposta em 1981 pela Associação Internacional de Maquinistas (IAM)? Escrita em um contexto no qual máquinas controladas por computador estavam sendo introduzidas na indústria, ela afirmava que “as novas tecnologias de automação e as ciências nas quais elas se baseiam são o produto de uma acumulação global de conhecimento ao longo de vários séculos. Portanto, os trabalhadores e suas comunidades têm o direito de participar das decisões e dos benefícios relacionados a esses avanços”.

*Sociólogo do Instituto Île-de-France de Pesquisa, Inovação e Sociedade (Ifris) e do Laboratório Técnicas, Territórios e Sociedades (Latts) da Universidade de Paris-Est.

1 The Economist, Londres, 21 abr. 2012. Ler também Sabine Blanc, “Demain, des usines dans nos salons” [Amanhã, fábricas em nossas salas], Le Monde Diplomatique, jun. 2012.
2 Laurent Carroué, “Industrie, socle de la puissance” [Indústria, base do poder], Le Monde Diplomatique, mar. 2012.
3 David Noble, Forces of production. A social history of industrial automation [Forças de produção. Uma história social da automação industrial], Oxford University Press, 1986.
4 Charles Babbage, Traité sur l’économie des machines et des manufactures [Tratado sobre a economia das máquinas e das manufaturas], Bachelier, Paris, 1833.
5 Philip Scranton, “The shows and the flows: materials, markets, and innovation in the US machine tool industry, 1945-1965” [As mostras e os fluxos: materiais, mercados e inovação na indústria de maquinaria nos EUA, 1945-1965], History and Technology, vol.25, n.3, 2009.
6 Sara Tocchetti, “DIYbiologists as ‘makers’ of personal biologies: how MAKE magazine and maker faires contribute in constituting biology as a personal technology” [Biólogos DIY como makers de biologias pessoais: como a revista Make e as feiras de makers contribuíram para constituir a biologia como uma tecnologia pessoal], Journal of Peer Production, n.2, 2012; Steven C. High e David W. Lewis, Corporate wasteland: the landscape and memory of deindustrialization [A terra devastada corporativa: a paisagem e a memória da desindustrialização], ILR Press, Ithaca, 2007.
7 Catherine Fisk, Working knowledge: employee innovation and the rise of corporate intellectual property, 1800-1930 [Conhecimento do trabalho: inovação dos empregados e o surgimento de uma propriedade intelectual corporativa, 1800-1930], University of North Carolina Press, Chapel Hill, 2009.
8 Ler Pierre Lazuly, “Télétravail à prix bradés sur Internet” [Teletrabalho a preços baixos na internet], Le Monde Diplomatique, ago. 2006.
9 Lilly Irani, “Microworking the crowd” [Microtrabalho na multidão], Limn 2, 2012. Disponível em: .10 Entrevista com o autor.

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