Ilustração: Bennet |
Recentemente, máquinas
eletrônicas capazes de produzir objetos, tornaram-se acessíveis ao grande
público. Elas suscitam paixões no seio de uma vanguarda, que enxerga na nova
tecnologia o fermento de uma nova revolução industrial. Porém, essas
ferramentas raramente são apresentadas no contexto que as viu nascer.
por Johan Soderberg*
07 de Janeiro de
2013
Esta seria a revolução
industrial do século XXI: ferramentas permitem a partir de agora fazer em casa
objetos que anteriormente tinham de ser comprados em lojas.1 Corte a laser,
impressoras 3-D, máquinas de fresar com comando digital... essas máquinas
seguem o mesmo princípio tecnológico: guiar os movimentos de um dispositivo
mecânico com o auxílio de um software. As mais famosas entre elas funcionam
como impressora, mas em três dimensões: passagem após passagem, um bocal se
desloca em três eixos e sobrepõe camadas de material (geralmente uma resina
sintética), seguindo um modelo digitalizado até obter o volume desejado. Do
puxador da porta à bicicleta, os objetos assim produzidos se multiplicam.
Apesar de essa tecnologia dar
ensejo a uma abundância de pequenas empresas inovadoras, seu desenvolvimento é
essencialmente trabalho de amadores, que se definem como makers[fazedores].
Enraizados no mundo do software livre, eles aplicam seus valores e práticas aos
mecanismos de produção. Para os mais radicais, a reapropriação das ferramentas
pela população abriria caminho para uma “democratização” da produção
industrial, tendo em mira a abolição da sociedade de consumo. Outros esperam reduzir
os custos do trabalho e, assim, tornar obsoleto o movimento de deslocalização
[outsourcing] da produção industrial para os países do Terceiro Mundo.2 Esse
ponto de vista, mais próximo dos círculos de negócios, é particularmente
expresso pela revista especializada Make[Fabrique], que, entre outras
atividades, organiza a cada ano a “feira do maker”, em várias cidades
importantes dos Estados Unidos.
No entanto, é suficiente andar
pelos corredores desse salão para constatar uma certa dissonância no seio da
revolução anunciada. Entre as numerosas atrações propostas em sua edição de
2011, em Nova York, era possível visitar a Print-Village [Vila da Impressão]:
cerca de vinte estandes dedicados à impressora 3-D Rep-Rap e a seus muitos
derivados (emblema desse movimento, a Rep-Rap é capaz de imprimir a maior parte
de seus componentes, e pode assim se “autorreplicar”).
Detectar trabalhadores
preguiçosos
Não muito longe dali, um
pavilhão bem mais imponente propunha várias exposições em torno de máquinas de
controle digital (CNC) sofisticadas. Orgulhosamente ostentando as três cores da
bandeira norte-americana, um estande se destacava: o da aliança de artesãos
americanos (AAM), membro do sindicato de trabalhadores do aço United
Steelworkers (USW). Ali, os visitantes eram estimulados a defender os empregos,
comprando produtos nacionais. Uma recepcionista, que distribuía broches com os
dizeres “Fabrique-os nos Estados Unidos”, teve de admitir a ironia que havia no
fato de ela estar naquele pavilhão. Na verdade, as máquinas expostas no estande
vizinho eram as descendentes diretas de uma tecnologia que permitira a
destruição dos empregos industriais.
Foi no contexto da Guerra Fria
que surgiram as máquinas CNC. Seu desenvolvimento, explica o historiador David
Noble,3 foi financiado em parte por contratos militares. Essencial na
rivalidade com o sistema soviético, essa tecnologia também tinha por objetivo
desarmar um inimigo interno: os sindicatos militantes, que tiravam sua força do
conhecimento detido pelos trabalhadores. Conforme descrito sem rodeios por
Frederick W. Taylor em seu Princípios da gestão científica de empresas,
publicado em 1911, “o gestor assume [...] a tarefa de compilar todo o
conhecimento e as habilidades tradicionais, que no passado pertenceram aos
trabalhadores; classificar, indexar e reduzir esse conhecimento a um conjunto
de regras, leis e fórmulas que vão constituir uma grande contribuição para os
trabalhadores na realização diária de suas tarefas”. As páginas anteriores a
essa passagem descrevem diferentes métodos pelos quais os trabalhadores
poderiam enganar os empregadores, fazendo-os acreditar que estavam trabalhando
a toda velocidade.
Para detectar os funcionários
preguiçosos e desonestos, Taylor propunha a criação de um índice de desempenho
médio, que serviria de ponto de comparação. Mas os engenheiros necessários para
medir a produtividade eram caros, e os trabalhadores rapidamente aprenderam a
enganá-los também... No entanto, a conformidade prometida pela reorganização do
trabalho poderia ser obtida de outra forma: incorporando o controle à
maquinaria. No início do século XIX, o matemático britânico Charles Babbage
tinha preparado – depois de observar numerosas áreas da indústria – um catálogo
de mecanismos engenhosamente concebidos para garantir a honestidade dos
empregados domésticos e trabalhadores, na ausência de seu mestre, e ostentava
“uma vantagem notável das máquinas”: a “supervisão que elas exercem sobre a
desatenção, a negligência e a preguiça do homem”.4 Esse é o mesmo Babbage que
mais tarde seria chamado de “pai do computador”, porque imaginou as primeiras
máquinas de calcular, aí incluída a “máquina analítica”, que usava os mesmos
cartões perfurados que iríamos encontrar um século depois nas máquinas CNC.
“Toda a dificuldade da
automação”, assinala Noble, “é tornar a máquina-ferramenta autônoma – isto é,
capaz de seguir as instruções especificadas pela gestão sem a intervenção de
operários – sem comprometer sua indispensável versatilidade. [...] Daí o papel
da programação, que permitia, pelo uso de softwares variáveis, modificar um
produto sem depender de operadores para transformar a ferramenta ou ajustar sua
configuração.” Os engenheiros viram chegar mais perto seu sonho quimérico de
uma fábrica totalmente automatizada. Motivações adicionais impulsionavam o
desenvolvimento de máquinas de comando digital: a necessidade de fabricar peças
que não poderiam ser facilmente construídas à mão, o desejo de aumentar a
produtividade e as perspectivas de se abrir à realização de visões tecno-utópicas
dos pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), principais
desenvolvedores de softwares e hardwares. No entanto, argumenta Noble, havia
outras pistas, cujas consequências para os trabalhadores poderiam se mostrar
muito diferentes, mas que foram descartadas de propósito.5
É preciso uma ocultação da
história industrial dessas ferramentas para autorizar as divagações que rodeiam
a promoção comercial da impressora 3-D MakerBot, e segundo as quais essa
“revolução” permitirá aos trabalhadores norte-americanos demitidos reencontrar
um emprego criativo e inovador convertendo-se de novo em makers independentes.
Talvez a fabricação individual lhes permita, de fato, retomar o contato com o
know-how e a criatividade. Mas isso é esquecer que os empregos nas fábricas nem
sempre foram embrutecedores. E, paradoxalmente, foi essa mesma tecnologia –
que, segundo alguns, contribuiria para reintroduzir profissões na competência
da economia – que tornou o trabalho nas fábricas tão desmoralizante.
Os makersnão são os herdeiros
do movimento operário – são antes o resultado histórico danegaçãodesse
movimento. Assim, uma série de figuras bem conhecidas do movimento maker vem do
MIT, o instituto que desempenhou papel fundamental na criação das máquinas CNC.
Essa raiz histórica aparece como uma “repressão” do movimento: uma memória que
ressurgiu em diferentes formas discordantes, desarticuladas, traumatizadas. Uma
prova é o investimento estético do qual são encarregadas, de maneira quase
obsessiva, as paisagens de ruínas e os terrenos industriais. Detroit, a antiga
capital norte-americana do automóvel, transformou-se a contragosto em símbolo
da desindustrialização. Esse lugar aparece o tempo todo na revista Makee nos
blogs desse movimento.6
Essa digressão na história da
produção é uma reminiscência daquela da propriedade intelectual nas grandes
empresas. Depois de ter descascado muitos relatórios de processos envolvendo
empregadores e empregados sobre a questão da propriedade das ideias, a jurista
Catherine Fisk foi capaz de colocar em evidência um mesmo tipo de deslocamento
do conhecimento. Até o início do século XIX, não havia nenhuma dúvida de que
todas as invenções que emanavam do trabalho dos operários pertenciam a estes
últimos. O conhecimento adquirido no local de trabalho estava à disposição
deles quando postulavam outro emprego. As tentativas dos patrões de se tornarem
proprietários das faculdades mentais dos trabalhadores livres, competentes e,
sobretudo, brancos eram frequentemente rejeitadas pelos tribunais: essa
exigência era semelhante à escravidão. Mas, quando o conhecimento se tornou
codificado, a relação de forças começou a se inverter em favor das empresas,
que, nos tribunais, conseguiram se apropriar completamente das ideias dos
funcionários.7
O movimento atual de
experimentação de abordagens alternativas ao direito autoral – um software
livre para o compartilhamento das obras artísticas em “creative commons” – se
inscreve nesse contexto da história do trabalho. Alguns pesquisadores estão
preocupados com os efeitos potencialmente desastrosos das plataformas de
trabalho abertas que poderiam, em alguns casos, levar os trabalhadores à
autoexploração − uma profecia que se realiza, por exemplo, em certas empresas
que se baseiam no modelo do “apelo à multidão” (crowdsourcing) para analisar ou
constituir dados.8 O rendimento médio de um “empregado” do site de
crowdsourcing da Amazon, por exemplo, que consiste em identificar objetos ou
pessoas em fotografias, se elevaria a US$ 1,25 por hora!9
Redução
dos salários
A importância das impressoras
3-D deve ser considerada nesse contexto, em especial na medida em que seus
promotores pretendem mudar o mundo do trabalho. Os makersestão realmente
planejando “linhas de produção”, formadas pela colocação em rede de um parque
de máquinas individuais apoiadas na mesa da cozinha de trabalhadores informais.
Não haveria aí o risco de desencadear uma queda maciça dos salários na
indústria? O instigador do projeto “Rep-Rap”, Adrian Bowyer, que impulsionou o
boomdas impressoras 3-D, teoriza que “não seria uma má notícia para os
trabalhadores, pois eles não precisariam mais comprar tantos produtos nas
lojas”.10 Essa é a questão de uma luta social para a redistribuição da riqueza
em um futuro no qual a fabricação digital será distribuída entre a população. A
contestação da distribuição da riqueza se desloca, indo da produção para os
consumidores, e para as ferramentas colocadas à sua disposição. Mas o design
dessas ferramentas é tema do mesmo tipo de confronto que a CNC enfrentou nas
fábricas em sua época.
Enquanto alguns makersabraçam
os ideais de uma produção solidária, empresários, investidores e advogados de
propriedade intelectual colocam todo seu peso no desenvolvimento de máquinas
que correspondem a uma visão diametralmente oposta. Eles planejam produtos
“prontos para imprimir”, que serão comprados como bens de consumo; a própria
máquina só poderá fabricar objetos previstos no catálogo. Mais uma vez, a
propriedade intelectual se encontra intimamente ligada à questão da
remuneração, mesmo que sua história de conflitos tenha sido reprimida tanto no
movimento makerquanto nas reflexões sobre software livre. Será preciso voltar à
declaração dos direitos tecnológicos dos trabalhadores, proposta em 1981 pela
Associação Internacional de Maquinistas (IAM)? Escrita em um contexto no qual
máquinas controladas por computador estavam sendo introduzidas na indústria,
ela afirmava que “as novas tecnologias de automação e as ciências nas quais
elas se baseiam são o produto de uma acumulação global de conhecimento ao longo
de vários séculos. Portanto, os trabalhadores e suas comunidades têm o direito
de participar das decisões e dos benefícios relacionados a esses avanços”.
*Sociólogo do Instituto Île-de-France
de Pesquisa, Inovação e Sociedade (Ifris) e do Laboratório Técnicas,
Territórios e Sociedades (Latts) da Universidade de Paris-Est.
1 The Economist, Londres, 21
abr. 2012. Ler também Sabine Blanc, “Demain, des usines dans nos salons”
[Amanhã, fábricas em nossas salas], Le Monde Diplomatique, jun. 2012.
2 Laurent Carroué, “Industrie,
socle de la puissance” [Indústria, base do poder], Le Monde Diplomatique, mar.
2012.
3 David Noble, Forces of
production. A social history of industrial automation [Forças de produção. Uma
história social da automação industrial], Oxford University Press, 1986.
4 Charles Babbage, Traité sur
l’économie des machines et des manufactures [Tratado sobre a economia das
máquinas e das manufaturas], Bachelier, Paris, 1833.
5 Philip Scranton, “The shows and the flows:
materials, markets, and innovation in the US machine tool industry, 1945-1965”
[As mostras e os fluxos: materiais, mercados e inovação na indústria de
maquinaria nos EUA, 1945-1965], History and Technology, vol.25, n.3, 2009.
6 Sara Tocchetti, “DIYbiologists as ‘makers’ of
personal biologies: how MAKE magazine and maker faires contribute in
constituting biology as a personal technology” [Biólogos DIY como makers de
biologias pessoais: como a revista Make e as feiras de makers contribuíram para
constituir a biologia como uma tecnologia pessoal], Journal of Peer Production,
n.2, 2012; Steven C. High e David W. Lewis, Corporate wasteland: the landscape
and memory of deindustrialization [A terra devastada corporativa: a paisagem e
a memória da desindustrialização], ILR Press, Ithaca, 2007.
7 Catherine Fisk, Working knowledge: employee
innovation and the rise of corporate intellectual property, 1800-1930
[Conhecimento do trabalho: inovação dos empregados e o surgimento de uma
propriedade intelectual corporativa, 1800-1930], University of North Carolina
Press, Chapel Hill, 2009.
8 Ler Pierre Lazuly,
“Télétravail à prix bradés sur Internet” [Teletrabalho a preços baixos na
internet], Le Monde Diplomatique, ago. 2006.
9 Lilly Irani, “Microworking
the crowd” [Microtrabalho na multidão], Limn 2, 2012. Disponível em: .10
Entrevista com o autor.
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