Obra de Francis Bicknell Carpenter, em que Lincoln apresenta texto da proclamação contra a escravidão, em 1864. |
O filme “Lincoln”, de Steven Spielberg, que acaba de estrear no
Brasil, narra como esse presidente de forte lembrança popular lutou contra a
escravidão e pela transformação dos escravos em trabalhadores. O que a obra
cinematográfica não conta, porém, é que Lincoln também lutou por outra
emancipação: que os escravos e os trabalhadores em geral fossem senhores não
apenas de sua atividade em si, mas também do produto resultante de seu
trabalho.
Vicenç Navarro*
O filme “Lincoln”, produzido e
dirigido por um dos diretores mais conhecidos dos EUA, Steven Spielberg, fez
reviver um grande interesse pela figura de Lincoln, um dos presidentes que, como
Franklin D. Roosevelt, sempre apareceu no ideário estadunidense com grande
lembrança popular. Destaca-se tal figura política como o fiador da unidade dos
EUA, após derrotar os confederados que aspiravam à secessão dos Estados do Sul
daquele Estado federal. É também uma figura que se destaca na história dos EUA
por ter abolido a escravidão e ter dado a liberdade e a cidadania aos
descendentes das populações imigrantes de origem africana, ou seja, a população
negra, que nos EUA se conhece como a população afro-americana.
Lincoln foi também um dos
fundadores do Partido Republicano, que em suas origens foi diretamente oposto
ao Partido Republicano atual - este altamente influenciado hoje por um
movimento – o Tea Party – chauvinista, racista e reacionário, por trás do qual
existem interesses econômicos e financeiros que querem eliminar a influência do
governo federal na vida econômica, social e política do país. O Partido
Republicano fundado pelo presidente Lincoln era, pelo contrário, um partido
federalista, que considerou o governo federal como avalista dos Direitos
Humanos. E entre eles, a emancipação dos escravos, tema central do filme
“Lincoln” e para o qual o presidente deu maior expressão. Terminar com a
escravidão significava que o escravo passava a ser trabalhador, dono de seu
próprio trabalho.
Lincoln, inclusive antes de ser
presidente, considerou outras conquistas sociais como parte também dos Direitos
Humanos e, entre elas, o direito do mundo do trabalho de controlar não só a
atividade em si, mas também o produto resultante dela. O direito de emancipação
dos escravos transformava o escravo em uma pessoa livre assalariada, unida –
segundo ele – em laços fraternais com os outros membros da classe trabalhadora,
independentemente da cor da pele. Suas demandas de que o escravo deixasse de
sê-lo e de que o trabalhador – tanto branco como negro – fosse o dono não só de
seu trabalho, mas também do produto de seu trabalho, eram igualmente
revolucionárias. A emancipação da escravidão requeria que a pessoa fosse dona
do seu trabalho. A emancipação da classe trabalhadora significava que a classe
trabalhadora fosse dona do produto do seu trabalho. E Lincoln demandou os dois
tipos de emancipação. O segundo tipo de emancipação, entretanto, nem sequer é
citado no filme Lincoln. Na realidade, é ignorado. E utilizo a expressão
“ignorado” em lugar de “escondido” porque é totalmente possível que os autores
do filme ou do livro sobre o qual se baseia nem sequer conheçam a história real
de Lincoln.
A Guerra Fria no mundo cultural
e inclusive acadêmico dos EUA (que continua existindo) e o enorme domínio do
que ali se chama a Corporate Class (a classe dos proprietários e gestores do
grande capital) sobre a vida, não só econômica, mas também cívica e cultural,
explica que a história formal dos EUA que se ensina nas escolas e nas
universidades seja muito distorcida, purificada de qualquer contaminação
ideológica procedente do movimento operário, seja socialismo, comunismo ou
anarquismo. A grande maioria dos estudantes estadunidenses, inclusive das
universidades mais prestigiadas e conhecidas, não sabe que a festa de 1º de
Maio, celebrada mundialmente como o Dia Internacional do Trabalho, é uma festa
em homenagem aos sindicalistas estadunidenses que morreram em defesa de
trabalhar oito horas por dia (em lugar de doze), vitória que transformou tal
reivindicação exitosa na maioria dos países do mundo. Nos EUA, tal dia, o 1º de
Maio, além de não ser festivo, é o dia da Lei e da Ordem - Law and Order Day -
(ver o livro People’s History of the U.S., de Howard Zinm). A história real dos
EUA é muito diferente da história formal promovida pelas estruturas de poder
estadunidenses.
As ignoradas e/ou escondidas
simpatias de Lincoln
Lincoln, já quando era membro
da Câmara Legislativa de seu Estado de Ilinóis, simpatizou claramente com as
demandas socialistas do movimento operário, não só dos EUA, mas também mundial.
Na realidade, Lincoln, tal como indiquei no começo do artigo, considerava como
um Direito Humano o direito do mundo do trabalho de controlar o produto de seu
trabalho, postura claramente revolucionária naquela época (e que continua sendo
hoje) e que nem o filme nem a cultura dominante nos EUA lembram ou conhecem,
que está convenientemente esquecida nos aparatos ideológicos do establishment
estadunidense controlados pela Corporate Class. Na realidade, Lincoln
considerou que a escravidão era o domínio máximo do capital sobre o mundo do
trabalho e sua oposição às estruturas de poder dos Estados sulinos se devia precisamente
a que percebia estas estruturas como sustentadoras de um regime econômico
baseado na exploração absoluta do mundo do trabalho.
Daí que visse a abolição da
escravidão como a liberação não só da população negra, mas de todo o mundo do
trabalho, beneficiando também a classe trabalhadora branca, cujo racismo ele
via que ia contra seus próprios interesses. Lincoln também indicou que “o mundo
do trabalho antecede o capital. O capital é o fruto do trabalho, e não teria
existido sem o mundo do trabalho, que o criou. O mundo do trabalho é superior
ao mundo do capital e merece a maior consideração (…). Na situação atual o
capital tem todo o poder e há que reverter este desequilíbrio”. Leitores dos
escritos de Karl Marx, contemporâneo de Abrahan Lincoln, lembrarão que algumas
destas frases eram muito semelhantes às utilizadas por tal analista do
capitalismo em sua análise da relação capital/trabalho sob tal sistema
econômico.
Será surpresa para um grande
número de leitores saber que os escritos de Karl Marx influenciaram Abraham
Lincoln, tal como documenta detalhadamente John Nichols em seu excelente
artículo “Reading Karl Marx with Abraham Lincoln Utopian socialists, Germam
communists and other republicans” publicado em Political Affairs (27/11/12), e
do qual extraio as citações, assim como a maioria dos dados publicados neste
artigo. Os escritos de Karl Marx eram conhecidos entre os grupos de
intelectuais que estavam profundamente insatisfeitos com a situação política e
econômica dos EUA, como era o caso de Lincoln. Karl Marx escrevia regularmente
no The New York Tribune, o rotativo intelectual mais influente nos Estados
Unidos daquele período. Seu diretor, Horace Greeley, se considerava um
socialista e um grande admirador de Karl Marx, quem convidou para ser colunista
de tal jornal. Nas colunas de seu jornal incluiu grande número de ativistas
alemães que haviam fugido das perseguições ocorridas na Alemanha daquele tempo,
uma Alemanha altamente agitada, com um nascente movimento operário que
questionava a ordem econômica existente. Alguns destes imigrantes alemães
(conhecidos no EUA daquele momento como os “Republicanos Vermelhos”) lutaram
mais tarde com as tropas federais na Guerra Civil, dirigidos pelo presidente
Lincoln.
Greeley e Lincoln eram amigos.
Na realidade, Greeley e seu jornal apoiaram desde o princípio a carreira
política de Lincoln, sendo Greeley quem lhe aconselhou a que se apresentasse à
presidência do país. E toda a evidência aponta que Lincoln era um fervente
leitor do The New York Tribune. Em sua campanha eleitoral para a presidência
dos EUA convidou vários “republicanos vermelhos” a integrarem-se a sua equipe.
Na realidade, já antes, como congressista, representante da cidadania de
Springfield no Estado de Ilinóis, apoiou frequentemente os movimentos
revolucionários que estavam acontecendo na Europa, e muito em especial na
Hungria, assinando documentos em apoio a tais movimentos.
Lincoln, grande amigo do mundo
do trabalho estadunidense e internacional
Seu conhecimento das tradições
revolucionárias existentes naquele período não era casual, e sim fruto de suas
simpatias com o movimento operário internacional e suas instituições.
Incentivou os trabalhadores dos EUA a organizar e estabelecer sindicatos antes
e durante sua presidência. Foi nomeado membro honorário de vários sindicatos.
Em sua resposta aos sindicatos de Nova York afirmou “vocês entenderam melhor
que ninguém que a luta para terminar com a escravidão é a luta para libertar o
mundo do trabalho, para libertar todos os trabalhadores. A libertação dos
escravos no Sul é parte da mesma luta pela libertação dos trabalhadores no
Norte”. E, durante a campanha eleitoral, o presidente Lincoln promoveu a
postura contra a escravidão afirmando explicitamente que a libertação dos
escravos permitiria aos trabalhadores exigir os salários que lhes permitissem
viver decentemente e com dignidade, ajudando com isso a aumentar os salários de
todos os trabalhadores, tanto negros como brancos.
Marx, e também Engels,
escreveram com entusiasmo sobre a campanha eleitoral de Lincoln, em um momento
em que ambos estavam preparando a Primeira Internacional do Movimento Operário.
Em um momento das sessões, Marx e Engels propuseram à Internacional que
enviasse uma carta ao presidente Lincoln felicitando-o por sua atitude e
postura. Na carta, a Primeira Internacional felicitava o povo dos EUA e seu
presidente por, ao terminar com a escravidão, haver favorecido a liberação de
toda a classe trabalhadora, não só estadunidense, mas também mundial.
O presidente Lincoln respondeu,
agradecendo a nota e dizendo que valorizava o apoio dos trabalhadores do mundo
a suas políticas, em um tom cordial, que certamente criou grande alarme entre
os establishments econômicos, financeiros e políticos de ambos os lados do
Atlântico. Estava claro, a nível internacional que, como afirmou mais tarde o
dirigente socialista estadunidense Eugene Victor Debs, em sua própria campanha
eleitoral, “Lincoln havia sido um revolucionário e que, por paradoxal que
pudesse parecer, o Partido Republicando havia tido, em suas origens, uma
tonalidade vermelha”.
A revolução democrática que
Lincoln começou e que nunca se desenvolveu
Não é preciso dizer que nenhum
destes dados aparece no filme Lincoln, nem são amplamente conhecidos nos EUA.
Mas, como bem afirmam John Nichols e Robin Blackburn (outro autor que escreveu
extensamente sobre Lincoln e Marx), para entender Lincoln tem que entender o
período e o contexto nos quais ele viveu. Lincoln não era um marxista (termo
sobreutilizado na literatura historiográfica e que o próprio Marx denunciou) e
não era sua intenção eliminar o capitalismo, mas corrigir o enorme
desequilíbrio existente nele, entre o capital e o trabalho. Mas, não há dúvida
de que foi altamente influenciado por Marx e outros pensadores socialistas, com
os quais compartilhou seus desejos imediatos, claramente simpatizando com eles,
levando sua postura a altos níveis de radicalismo em seu compromisso
democrático. É uma tergiversação histórica ignorar tais fatos, como faz o filme
Lincoln.
Não resta dúvida que Lincoln
foi uma personalidade complexa, com muitos altos e baixos. Mas as simpatias
estão escritas e bem definidas em seus discursos. E mais, os intensos debates
que aconteciam nas esquerdas europeias se reproduziam também nos círculos
progressistas dos EUA. Na realidade, a maior influência sobre Lincoln foi a dos
socialistas utópicos alemães, muitos dos quais se refugiaram em Ilinóis fugindo
da repressão europeia.
O comunalismo que caracterizou
tais socialistas influenciou a concepção democrática de Lincoln, interpretando
democracia como a governança das instituições políticas por parte do povo, no
qual as classes populares eram a maioria. Sua famosa Expressão (que se
converteu no esplêndido slogan democrático mais conhecido no mundo – Democracy
for the people, of the people and by the people - claramente afirma a
impossibilidade de ter uma democracia do povo e para o povo sem que seja
realizada e levada a cabo pelo próprio povo. Daí vem a libertação dos escravos
e do mundo do trabalho como elementos essenciais de tal democratização. Seu
conceito de igualdade levava inevitavelmente a um conflito com o domínio de
tais instituições políticas pelo capital. E a realidade existente hoje nos EUA
e que detalho em meu artigo “O que não se disse nos meios de comunicação sobre
as eleições nos EUA” (Público, 13.11.12)é uma prova disso. Hoje a Corporate
Class controla as instituições políticas do país.
Últimas observações e um pedido
Repito que nenhuma destas
realidades aparece no filme. Spielberg não é, afinal, nenhum Pontecorvo e o
clima intelectual estadunidense ainda está estancado na Guerra Fria que lhe
empobrece intelectualmente. “Socialismo” continua sendo uma palavra mal vista
nos círculos do establishment cultural daquele país. E, na terra de Lincoln, aquele
projeto democrático que ele sonhou nunca se realizou devido a enorme influência
do poder do capital sobre as instituições democráticas, influência que diminuiu
enormemente a expressão democrática naquele país. E o paradoxo brutal da
historia é que o Partido Republicano se tenha convertido no instrumento
político mais agressivo hoje existente a serviço do capital.
Certamente, agradeceria que
todas as pessoas que achem este artigo interessante o distribuam amplamente,
incluindo, em sua distribuição os críticos de cinema, que em sua promoção do
filme, seguramente não dirão nada do outro Lincoln desconhecido em seu próprio
país (e em muitos outros). Um dos fundadores do movimento revolucionário
democrático nem sequer é reconhecido como tal. Sua emancipação dos escravos é
uma grande vitória que deve ser celebrada. Mas Lincoln foi muito além. E disto
nem se fala.
*Vicenç Navarro (Barcelona,
1937) é cientista social. Foi professor catedrático da Universidade de
Barcelona e hoje dá aulas nas universidades Pompeu Fabra e Johns Hopkins. Por
sua luta contra o franquismo, viveu anos exilado na Suécia. Este artigo foi
publicado em Domínio Público.
Traduzido e replicado por: Carta
Maior
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