Foto: ficabattisti.blogspot.com Affonso Romano de Santana |
De repente,
Naqueles dias começaram
A desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito naqueles dias.
E se esvanecia.
Eclipsava-se entre um endereço e outro
Ou no táxi que se ia.
Culpado ou não, sumia-se
Ao regressar do escritório ou da orgia.
Entre um trago de conhaque e um aceno de mão,
O bebedor sumia.
Evaporava o pai ao encontro da filha que não via.
Mães segurando filhos e compras,
Gestantes com tricots ou grupos de estudantes
Desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
E médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos se diluíam
-mal ligavam o torno do dia.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito naqueles dias.
Desaparecia-se a olhos vistos
E não era miopia.
Desaparecia-se até á primeira vista.
Bastava que alguém visse um desaparecido
E o desaparecido desaparecia.
Desaparecia o mais conspícuo
E o mais obscuro sumia.
Até deputados e presidentes esvanesciam.
Sacerdotes, igualmente levitando iam,
Aerefeitos constatas do além
Como os pescadores partiam.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito naqueles dias.
Os atores no palco, entre um gesto e outro,
E os da platéia enquanto riam.
Não, não era fácil
Ser poeta naqueles dias.
Porque os poetas, sobretudo,
-desapareciam.
Se fosse ao tempo da bíblia eu diria
Que carros de fogo arrebatavam os mais puros
Em mística euforia.
Não era. É ironia.
E os que estavam perto, em pânico fingiam
Que não viam.
Se abstraiam.
Continuavam seu baralho a conversar demências com o ausente,
Como se ele estivesse ali sorrindo
com roupas e dentes.
com roupas e dentes.
Em toda família á mesa havia
Uma cadeira vazia, a qual se dirigiam.
Servia-se comida fria ao extinguido parente
E isto alimentava ficções
-nas salas e mentes
Enquanto no palácio, remorsos vivos boiavam
-na sopa do presidente.
As flores olhando a cena, não compreendiam.
Indagavam dos pássaros,que emudeciam.
As janelas das casas mal podiam crer...No que viam.
-as pedras, no entanto,
Gravavam os nomes dos fantasmas
Pois sabiam que quando chegasse a hora
Por serem pedras, falariam.
O desaparecido é como um rio:
-se tem nascente, tem foz.
Se teve corpo, tem ou terá voz.
Não há verme que em sua fome
Roa totalmente um nome.
O nome habita as vísceras da fera
Como a vítima corroe o algoz.
E surgiram sinais precisos
De que os desaparecidos,
Cansados de desaparecerem vivos
Iam aparecer mesmo mortos
Florescendo com seus corpos
A primavera de ossos.
Brotavam troncos de árvore,
Rios, insetos e nuvens
Em cujo porte se viam
Vestígios dos que sumiam.
Os desaparecidos, enfim,
Amadureciam sua morte.
Desponta um dia uma tíbia
Na crosta fria dos dias
E no subsolo da história
-coberto por duras botas,
Faz-se amarga arqueologia.
A natureza, como a história,
Segrega memória e vida
E cedo ou tarde desova
A verdade sobre a aurora.
Não há cova funda que sepulte
- a rasa covardia.
Não há túmulo que oculte
Os frutos da rebeldia.
Cai um dia em desgraça
A mais torpe ditadura
Quando os vivos saem a praça
E os mortos, da sepultura.
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