Por
Numa preciosa entrevista que Jean-Luc Godard concede a Alexander Kluge no curta-metragem Amor Cego (2001), este o questiona sobre qual seu filme mais curto e qual o mais longo. Sobre o primeiro formato, o cineasta francês faz graça, diz que seria o pior e que poderia cortá-lo tanto quanto possível. No que diz respeito ao segundo formato, Godard cita que é sempre o mais recente, pois não se consegue parar, não se consegue terminá-lo. “Como a segunda parte vem após a primeira, de fato o filme apenas termina ali onde começou. Como já começara uma hora antes, então volta ao início, à moda dos contos de Borges.” Decerto o escritor argentino apreciaria a noção cíclica de Godard, seguida por Kluge. O diretor alemão realizou, sete anos depois daquele encontro, Notícias de Antiguidades Arqueo-lógicas – Marx, Eisenstein, O Capital (Versátil, R$ 72,80), uma produção documental de nove horas e meia que é prova legítima da crença cega de um pensador por um tema que deseja esgotar. Neste caso, o de duas- -crenças, uma embutida na outra.
Como é possível deduzir do subtítulo do filme, agora lançado em DVD na versão integral pela Versátil, a pretensão não se mostra modesta. A tríade ali representada responde pela proposta de Kluge, um dos nomes renovadores do cinema alemão nos anos 60, de retomar a ambiciosa ideia do cineasta russo Sergei Eisenstein de filmar O Capital. O autor de clássicos como O Encouraçado Potemkin (1925) e Outubro (1927), por sua vez, não sustentava o desejo numa estrutura narrativa, digamos, convencional, já que a ousadia cinematográfica ele já dominava. Queria formatar sua adaptação do que o tempo sugeriu ser inadaptável ao cinema à luz de outro clássico, agora literário, o Ulisses, de James Joyce. Se este adotou o contexto épico de Homero para contar, num fluxo de consciência, um único dia na vida do personagem Leopold Bloom, Eisenstein faria o mesmo renovando o protagonista por um casal de operários metido no turbilhão da era industrial. Com mais evidência na mulher do que na figura masculina.
O mesmo processo de reordenação faz Kluge em seu filme, conferindo-lhe ares atuais. Seu princípio, quando da realização em 2008, partiu da impactante crise econômica daquele ano, alimentada pelo estouro do sistema de especulação do crédito e bancária. Esse momento, para ele, seria tão emblemático quanto o operado por situações como a Revolução Industrial e a quebra de 1929 na Bolsa nova-iorquina. Não só para ele, como para Eisenstein, este sim uma testemunha desse último episódio definidor para que o projeto de filmar O Capital não conquistasse nenhum interesse, seja de produtores franceses, seja de soviéticos. Ao alinhavar esses dois períodos, Kluge espelha o próprio interesse pela obra capital da filosofia econômica no sonho não realizado pelo russo em filmá-la.
A maneira como faz isso tende ao resultado irregular, mas estimulante. Kluge reúne depoimentos de estudiosos alemães de linha marxista, de quem é próximo por ser um deles, a exemplo de Hans Magnus Enzensberger. O poeta e ensaísta lembra ao diretor que um exemplo atual das condições descritas pelo Capital é a dívida do cidadão americano impossibilitado de assegurar a compra da casa própria. “Esta seria uma grande cena para seu filme”, diz. Comparece ainda o filósofo Peter Sloterdjik, que fornece a Kluge um compasso interessante entre a figura de Bloom em Joyce, que como o Ulisses de Homero se metamorfoseia, e o entendimento do dinheiro e do conceito da “mais-valia” tão central na obra de Marx, também transformados pelo tempo. “Sempre encontraremos a matéria disfarçada”, aponta.
O filme alimenta-se ainda de cartelas com pensamentos e poemas que surgem traduzidas e coloridas na tela, como no formato original do filme, material extraído da obra da poetisa anarquista Louise Michel. Os recursos para Kluge dar conta da demanda exigida pela união de Eisenstein e Marx multiplicam-se com trechos de óperas, a exemplo da montagem de Tristão e Isolda, de Wagner, pelo também cineasta alemão Werner Schroeter.- Nesta, a referência direta é Encouraçado Potemkin, com marinheiros em ação no levante que é ponto culminante no filme. No caso de O Maquinista Hopkins, do compositor Max Brand, a aproximação se dá com outro clássico sobre a humanidade regida pela ditadura da máquina e o impasse econômico gerado por tal situação. Trata-se de Metrópolis, de Fritz Lang, com quem, aliás, Kluge trabalhou. No caso da chamada “primeira ópera de fábrica em língua alemã”, a história se dá num galpão industrial, revelando situações cotidianas e aspirações dos operários.
Talvez a mais interessante investigação no tratado de Kluge do que é uma mercadoria e de como ela se apropria de vários conceitos, seja de cunho abstrato, seja filosófico, adquirindo um valor nada banal, como sugere Marx, está no curta–metragem O Homem na Coisa. Realizado pelo diretor de nova geração Tom Tykwer (Corra, Lola, Corra), o filme congela uma cena cotidiana de uma jovem caminhando na rua para então tratar de vários objetos presentes no quadro, dos sapatos dela a registros numéricos de gás do prédio, portas e maçanetas.
Nessa atitude de distensão e dissecação em que o filme opera, Kluge nunca deixa de promover a fonte maior de seu filme, que é O Capital, por também ter sido a obra o grande desafio para Eisenstein. Volta a ela na forma de várias leituras de passagens do conjunto dos livros, em especial dos rascunhos que originaram a obra, chamados Grundrisse, agora editados no Brasil em um volume da Boitempo. No filme, são apresentações realizadas por atores, em geral uma dupla que relembra a perspectiva do cineasta russo sobre o casal de operários. Além dos três DVDs com os 570 minutos de filme, um encarte de 64 páginas contendo escritos iniciais acompanha o pacote, assim como o curta que traz a conversa com Godard é um brinde nos extras.
Kluge, seguidor confesso do colega francês, não deixa de sugerir aí uma espécie de visita de admirador a um mestre, de quem consegue afortunadamente arrancar, além de bom papo, alguns conselhos de como proceder na feitura de seu cinema. A mesma sorte não teve Eisenstein, segundo o diretor alemão comenta no documentário, ao procurar um James Joyce já comprometido pela cegueira. Apesar de ter visto os filmes do russo e ser um entusiasta deles, o autor irlandês pouco conseguiu colaborar com a ideia de ver seu clássico como apoio à adaptação de O Capital. De forma mais incisiva, segundo especialistas, não teria considerado o projeto de bom grado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário