O grande empresariado se diverte ao financiar campanhas dos
mesmos políticos que serão seus fiéis servidores e que sempre acusarão de
preguiçosos e corruptos
Por Lúcio Flávio Rodrigues de
Almeida
A democracia liberal de massas
é bem mais jovem do que o capitalismo. Até a virada do século XVIII para o XIX,
a maioria dos que se dedicavam à política, bem como os que refletiam sobre ela,
era liberal e visceralmente antidemocrática. Já os que defendiam a democracia
consideravam-na incompatível com uma sociedade dividida em classes. E os
terrenos adequados ao poder do povo eram a sociedade sem classes ou, então,
para usar a expressão de Crawford B. Macpherson, uma “sociedade de classe
única”, ou seja, de pequenos proprietários. Pode-se sintetizar essa última posição
com a célebre passagem de Rousseau, em O contrato social: uma sociedade onde
ninguém seja tão rico para poder comprar alguém, nem tão pobre que seja
obrigado a se vender. Trocando em miúdos, uma sociedade de pequenos
proprietários (granjeiros, comerciantes, artesãos), sem a conhecida
desigualdade entre os ricaços e os que pouco ou nada têm.
No interior dessa polaridade,
não é de se estranhar a aversão – ou mesmo o temor – dos liberais ao sufrágio
universal. Já durante a Revolução Francesa, os moderados admitiam a
generalização dos direitos civis, mas consideravam que ampliar os direitos
políticos a todos os homens (as mulheres ficavam de fora) era razoável. O maior
medo era que a maioria abolisse, por meio do voto, a propriedade privada.
Monstrengo
inesperado
Duras lutas levaram ao parto do
monstrengo inesperado: a mistura de democracia com sociedade de classes.
Vários fatores contribuíram
para esse processo de constituição da democracia liberal de massas. Do ponto de
vista dos dominantes, foi decisiva a descoberta de que um aparelho estatal
fortemente burocratizado, até porque protegido das intempéries eleitorais,
estaria apto a recorrer à violência para “manter a ordem” (leia-se a
propriedade privada dos meios de produção ou, como atualmente juram os
principais candidatos, “o respeito aos contratos”). Outra descoberta
fascinante: as próprias eleições poderiam se integrar ao, aparentemente
inesgotável, repertório ideológico de que o capitalismo dispõe para se
legitimar junto aos dominados.
Agora, sim: com o núcleo do
aparelho estatal garantindo a ordem, ou seja, “fora disso”, porque voltado para
o interesse público e dotado dos recursos de violência necessários para
defendê-lo; e as eleições girando em torno da disputa sobre quem melhor
gerencia os conflitos no interior da “ordem”, mesmo que simulando contestá-la,
os dominantes poderiam ir à luta pelo voto dos dominados, sem os quais,
enquanto minoria, não poderiam se eleger para também cuidar da “coisa pública”,
inclusive, a boa elaboração das leis.
Político sagaz e sem papas na
língua, o truculento Bismarck, sentenciou que, se o povo soubesse de que eram
feitas as leis e as salsichas, não dormiria tranquilo. De outro ponto de vista,
Eric Hobsbawm, o grande historiador da sociedade burguesa, observou que a era
da democratização é gêmea da hipocrisia política em larga escala.
Como se vê, não é fácil definir
corrupção política.
Se a considerarmos como
apropriação indébita da coisa pública por interesses privados, os problemas, ao
invés de resolvidos, mal começam. Até pela difícil distinção entre público e
privado no capitalismo. Pois, apesar de todo o imenso e criativo esforço
intelectual despendido, resta a dura realidade de que os interesses
fundamentais dos dominantes são consagrados, inclusive no plano jurídico, como
públicos no mesmo processo em que os interesses dos dominados são constituídos
como particulares.
No interior dessa moldura
estrutural, existem, por exemplo, mil e um modos de arrancar recursos do BNDES
para estimular o agronegócio. Nem vamos perder tempo com o que sobra para a
caminhonete do ano, o consumismo afetado, tipo assim. Ainda restam a superexploração
de homens e mulheres (crianças e adultos), a degradação ambiental, as boas
relações com os centros decisórios. Foram até chamados de heróis pelo
presidente da República (da coisa pública). Pois, graças ao seu
empreendedorismo, a balança comercial segura as pontas de
uma política econômica que
remunera, com juros elevadíssimos, uma casta de sanguessugas planetários. E
pobres de nós, que precisamos desses heróis, quando a grana (deles) encurta, empreendem
uma série de ações, inclusive entupindo rodovias (coisa pública) com “seus”
tratores, fazem lobbies em dezenas de agências governamentais, mobilizam sua
bancada parlamentar e terminam por conseguir alongamento das dívidas. E mais
empréstimos. Sempre, é claro, em nome do interesse maior, em nome da coisa
pública.
Compare essa situação
corriqueira com o tratamento que os grandes meios de comunicação dispensaram a
um grupo de sem-terras que ocupou uma área explorada pela Cutrale, o maior
conglomerado sucroalcooleiro do mundo: foram chamados de invasores, inimigos do
país, destruidores do meio ambiente, em suma, criminalizados sob todas as
formas. Tive a oportunidade de participar de um debate na Globo News e ouvir do
presidente da Sociedade Ruralista Brasileira (uma pessoa muito agradável), que
a ação dos sem-terra foi “guerrilheira”; de um procurador do ministério
público, que o MST recebia, de modo indevido, verbas estatais e que a
privatização da Vale foi um grande bem para o Brasil; e, como tentei abordar o
tema da coisa pública, a coordenadora do programa foi taxativa ao determinar
que a coisa pública era muito grande para caber naquele debate. Não deixa de
ser um modo de simplificar as coisas.
Corrupção
na mídia
Passemos aos alvos preferidos
das conversas sobre corrupção, até porque são insistentemente pautadas pelos
grandes meios de comunicação.
Um simples exame superficial
revela que a evolução do patrimônio privado de grande parte dos políticos
brasileiros é incompatível com os rendimentos que legalmente auferem do
exercício de suas funções públicas. Somente por esse critério a ficha limpa
seria supérflua.
Diante da permanente avalanche
de denúncias, o curioso é que os grandes denunciados não costumam se hospedar
nas infectas prisões que eles mesmos mandaram construir. Ainda mais curioso:
geralmente, os grandes denunciados de corrupção controlam, em seus redutos
políticos, as sucursais dos mesmíssimos grandes meios de comunicação
(repetidoras de TV inclusas) que os denunciam. E alguns – oh, mundo cruel! –
são ou foram colunistas de jornalões que se apresentam como arautos da
moralidade política. É bastante comum que esse mesmo político seja denunciado e
tratado com reverência em diferentes espaços ou momentos do mesmo jornal.
Esse é um dos motivos para a
grande imprensa, sempre contra o “radicalismo”, insistir no discurso de que a
luta contra a corrupção leva tempo, que Deus não fez o mundo em um só dia e
que, com o tempo, as instituições se aperfeiçoam, os partidos se tornarão
programáticos e ideológicos e, enfim, melhoraremos a “qualidade da democracia”.
O problema é que esse
evolucionismo meia-boca não resiste a qualquer exame do passado. Não vamos
muito longe. Basta lembrar que, nos anos 20, os levantes tenentistas tinham
como um de seus principais alvos “os políticos” profissionais, todos considerados
corruptos. Na década seguinte, idos de 1937, o lema de José Américo de Almeida,
um quase candidato à presidência da República (Getúlio deu o golpe antes das
eleições), era “Eu sei onde está o dinheiro”. Nos anos 40, com a
“redemocratização”, fundou-se a UDN (União Democrática Nacional), um partido
que se celebrizou pelo moralismo, pelo golpismo, inclusive o apoio ativo ao
golpe de 1964, que, sempre em nome da luta contra a corrupção e a subversão,
abriu caminho para 21 anos de ditadura militar. Em tempo, Antonio Carlos
Magalhães e José Sarney eram da UDN.
Essa contação de caso não leva
mesmo muito longe, mas talvez ajude a desconfiar não apenas do evolucionismo
tipo “me engana que eu gosto”, mas também das propostas de reforma política de
fachada. Como insiste o bom senso, uma corda tem duas pontas. Não adianta focar
no corrupto e ocultar o corruptor.
Financiamento
de campanha
Voltemos aos nossos heróis e
similares, pois é aí que o bicho pega.
Para recomeçar, observe este
fantástico processo ideológico: a insistência na denúncia da corrupção “ilegal”
é um extraordinário meio de legitimação da exploração dos trabalhadores pelos
capitalistas. É como se desejássemos uma sociedade onde o capitalismo funciona
em estado quimicamente puro, com os capitalistas se apropriando “apenas” do
sobretrabalho produzido pelos proletários e o Estado “bem longe” dessa
encrenca, limitando-se a zelar pelo interesse público. Só que vendo bem de
perto, essa é justamente a mais poderosa ideologia – o liberalismo –, que cimenta
ocultando as relações sociais capitalistas.
O grande empresariado se
diverte ao financiar campanhas dos mesmos políticos que serão seus fiéis
servidores e que sempre acusarão de preguiçosos e corruptos. Mais tarde, será
muito mais fácil tapar o buraco de operações financeiras desastradas recebendo
o generoso socorro do Banco do Brasil e do BNDES. Sem perder a pose de defensor
do bom uso da coisa pública.
Nesse processo, a grande
imprensa presta contribuição inestimável. Até porque ela condensa maravilhosamente
as duas funções: de empresário e de agente político-ideológico, sempre
alardeando que é independente, ou seja, não tem rabo preso com ninguém (antigo
slogan do principal jornal de um grupo que emprestava seus veículos para
torturadores e assassinos de presos políticos). Não por acaso, a grande
imprensa, que passa quase todo o tempo denunciando a corrupção das instituições
políticas, pressiona movimentos sociais para que se transformem em partidos
políticos e restrinjam sua atuação ao mesmíssimo campo institucional que ela
denuncia. Não se trata de uma contradição, mas de uma luta político-ideológica
para domesticar esses movimentos. Quer dizer que não adianta reclamar da
corrupção?
De fato, como se vê, não
adianta muito e é pouquíssimo provável que o ficha limpa altere as relações de
opressão política e exploração econômica vigentes na sociedade brasileira. Isso
é o fundamental. Em um plano mais secundário, só os incompetentes, os descartáveis
ou as eventuais vítimas de acidentes de trabalho (no geral, em feroz confronto
com seus colegas de profissão) serão pegos. Quer dizer que não adianta lutar
contra a corrupção? Êpa! Não foi o que escrevi.
Uma coisa é reclamar e
reproduzir bovinamente aquilo do que se reclama. Outra coisa é lutar contra a
corrupção de modo consequente, o que implica atacar suas causas. Aí, mais do
que reclamar dos “políticos”, cabe levar adiante uma luta política. Mas, para
isso, é preciso fazer política de outro modo, com outro tipo de gente e,
fundamentalmente, contra o sistema que, ao mercantilizar cada vez mais todas as
relações humanas, não deixaria de fora exatamente a atividade política. Sobre
isso aí temos assunto para diversos artigos.
*Lucio Flávio Rodrigues de
Almeida é cientista político e professor da PUC-SP.
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