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sábado, 18 de outubro de 2014

Contra a corrupção política, só uma outra política


O grande empresariado se diverte ao financiar campanhas dos mesmos políticos que serão seus fiéis servidores e que sempre acusarão de preguiçosos e corruptos

Por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida

A democracia liberal de massas é bem mais jovem do que o capitalismo. Até a virada do século XVIII para o XIX, a maioria dos que se dedicavam à política, bem como os que refletiam sobre ela, era liberal e visceralmente antidemocrática. Já os que defendiam a democracia consideravam-na incompatível com uma sociedade dividida em classes. E os terrenos adequados ao poder do povo eram a sociedade sem classes ou, então, para usar a expressão de Crawford B. Macpherson, uma “sociedade de classe única”, ou seja, de pequenos proprietários. Pode-se sintetizar essa última posição com a célebre passagem de Rousseau, em O contrato social: uma sociedade onde ninguém seja tão rico para poder comprar alguém, nem tão pobre que seja obrigado a se vender. Trocando em miúdos, uma sociedade de pequenos proprietários (granjeiros, comerciantes, artesãos), sem a conhecida desigualdade entre os ricaços e os que pouco ou nada têm.

No interior dessa polaridade, não é de se estranhar a aversão – ou mesmo o temor – dos liberais ao sufrágio universal. Já durante a Revolução Francesa, os moderados admitiam a generalização dos direitos civis, mas consideravam que ampliar os direitos políticos a todos os homens (as mulheres ficavam de fora) era razoável. O maior medo era que a maioria abolisse, por meio do voto, a propriedade privada.

Monstrengo inesperado

Duras lutas levaram ao parto do monstrengo inesperado: a mistura de democracia com sociedade de classes.

Vários fatores contribuíram para esse processo de constituição da democracia liberal de massas. Do ponto de vista dos dominantes, foi decisiva a descoberta de que um aparelho estatal fortemente burocratizado, até porque protegido das intempéries eleitorais, estaria apto a recorrer à violência para “manter a ordem” (leia-se a propriedade privada dos meios de produção ou, como atualmente juram os principais candidatos, “o respeito aos contratos”). Outra descoberta fascinante: as próprias eleições poderiam se integrar ao, aparentemente inesgotável, repertório ideológico de que o capitalismo dispõe para se legitimar junto aos dominados.

Agora, sim: com o núcleo do aparelho estatal garantindo a ordem, ou seja, “fora disso”, porque voltado para o interesse público e dotado dos recursos de violência necessários para defendê-lo; e as eleições girando em torno da disputa sobre quem melhor gerencia os conflitos no interior da “ordem”, mesmo que simulando contestá-la, os dominantes poderiam ir à luta pelo voto dos dominados, sem os quais, enquanto minoria, não poderiam se eleger para também cuidar da “coisa pública”, inclusive, a boa elaboração das leis.

Político sagaz e sem papas na língua, o truculento Bismarck, sentenciou que, se o povo soubesse de que eram feitas as leis e as salsichas, não dormiria tranquilo. De outro ponto de vista, Eric Hobsbawm, o grande historiador da sociedade burguesa, observou que a era da democratização é gêmea da hipocrisia política em larga escala.

Como se vê, não é fácil definir corrupção política.

Se a considerarmos como apropriação indébita da coisa pública por interesses privados, os problemas, ao invés de resolvidos, mal começam. Até pela difícil distinção entre público e privado no capitalismo. Pois, apesar de todo o imenso e criativo esforço intelectual despendido, resta a dura realidade de que os interesses fundamentais dos dominantes são consagrados, inclusive no plano jurídico, como públicos no mesmo processo em que os interesses dos dominados são constituídos como particulares.

No interior dessa moldura estrutural, existem, por exemplo, mil e um modos de arrancar recursos do BNDES para estimular o agronegócio. Nem vamos perder tempo com o que sobra para a caminhonete do ano, o consumismo afetado, tipo assim. Ainda restam a superexploração de homens e mulheres (crianças e adultos), a degradação ambiental, as boas relações com os centros decisórios. Foram até chamados de heróis pelo presidente da República (da coisa pública). Pois, graças ao seu empreendedorismo, a balança comercial segura as pontas de

uma política econômica que remunera, com juros elevadíssimos, uma casta de sanguessugas planetários. E pobres de nós, que precisamos desses heróis, quando a grana (deles) encurta, empreendem uma série de ações, inclusive entupindo rodovias (coisa pública) com “seus” tratores, fazem lobbies em dezenas de agências governamentais, mobilizam sua bancada parlamentar e terminam por conseguir alongamento das dívidas. E mais empréstimos. Sempre, é claro, em nome do interesse maior, em nome da coisa pública.

Compare essa situação corriqueira com o tratamento que os grandes meios de comunicação dispensaram a um grupo de sem-terras que ocupou uma área explorada pela Cutrale, o maior conglomerado sucroalcooleiro do mundo: foram chamados de invasores, inimigos do país, destruidores do meio ambiente, em suma, criminalizados sob todas as formas. Tive a oportunidade de participar de um debate na Globo News e ouvir do presidente da Sociedade Ruralista Brasileira (uma pessoa muito agradável), que a ação dos sem-terra foi “guerrilheira”; de um procurador do ministério público, que o MST recebia, de modo indevido, verbas estatais e que a privatização da Vale foi um grande bem para o Brasil; e, como tentei abordar o tema da coisa pública, a coordenadora do programa foi taxativa ao determinar que a coisa pública era muito grande para caber naquele debate. Não deixa de ser um modo de simplificar as coisas.


Corrupção na mídia

Passemos aos alvos preferidos das conversas sobre corrupção, até porque são insistentemente pautadas pelos grandes meios de comunicação.

Um simples exame superficial revela que a evolução do patrimônio privado de grande parte dos políticos brasileiros é incompatível com os rendimentos que legalmente auferem do exercício de suas funções públicas. Somente por esse critério a ficha limpa seria supérflua.

Diante da permanente avalanche de denúncias, o curioso é que os grandes denunciados não costumam se hospedar nas infectas prisões que eles mesmos mandaram construir. Ainda mais curioso: geralmente, os grandes denunciados de corrupção controlam, em seus redutos políticos, as sucursais dos mesmíssimos grandes meios de comunicação (repetidoras de TV inclusas) que os denunciam. E alguns – oh, mundo cruel! – são ou foram colunistas de jornalões que se apresentam como arautos da moralidade política. É bastante comum que esse mesmo político seja denunciado e tratado com reverência em diferentes espaços ou momentos do mesmo jornal.

Esse é um dos motivos para a grande imprensa, sempre contra o “radicalismo”, insistir no discurso de que a luta contra a corrupção leva tempo, que Deus não fez o mundo em um só dia e que, com o tempo, as instituições se aperfeiçoam, os partidos se tornarão programáticos e ideológicos e, enfim, melhoraremos a “qualidade da democracia”.

O problema é que esse evolucionismo meia-boca não resiste a qualquer exame do passado. Não vamos muito longe. Basta lembrar que, nos anos 20, os levantes tenentistas tinham como um de seus principais alvos “os políticos” profissionais, todos considerados corruptos. Na década seguinte, idos de 1937, o lema de José Américo de Almeida, um quase candidato à presidência da República (Getúlio deu o golpe antes das eleições), era “Eu sei onde está o dinheiro”. Nos anos 40, com a “redemocratização”, fundou-se a UDN (União Democrática Nacional), um partido que se celebrizou pelo moralismo, pelo golpismo, inclusive o apoio ativo ao golpe de 1964, que, sempre em nome da luta contra a corrupção e a subversão, abriu caminho para 21 anos de ditadura militar. Em tempo, Antonio Carlos Magalhães e José Sarney eram da UDN.

Essa contação de caso não leva mesmo muito longe, mas talvez ajude a desconfiar não apenas do evolucionismo tipo “me engana que eu gosto”, mas também das propostas de reforma política de fachada. Como insiste o bom senso, uma corda tem duas pontas. Não adianta focar no corrupto e ocultar o corruptor.

Financiamento de campanha

Voltemos aos nossos heróis e similares, pois é aí que o bicho pega.

Para recomeçar, observe este fantástico processo ideológico: a insistência na denúncia da corrupção “ilegal” é um extraordinário meio de legitimação da exploração dos trabalhadores pelos capitalistas. É como se desejássemos uma sociedade onde o capitalismo funciona em estado quimicamente puro, com os capitalistas se apropriando “apenas” do sobretrabalho produzido pelos proletários e o Estado “bem longe” dessa encrenca, limitando-se a zelar pelo interesse público. Só que vendo bem de perto, essa é justamente a mais poderosa ideologia – o liberalismo –, que cimenta ocultando as relações sociais capitalistas.

O grande empresariado se diverte ao financiar campanhas dos mesmos políticos que serão seus fiéis servidores e que sempre acusarão de preguiçosos e corruptos. Mais tarde, será muito mais fácil tapar o buraco de operações financeiras desastradas recebendo o generoso socorro do Banco do Brasil e do BNDES. Sem perder a pose de defensor do bom uso da coisa pública.

Nesse processo, a grande imprensa presta contribuição inestimável. Até porque ela condensa maravilhosamente as duas funções: de empresário e de agente político-ideológico, sempre alardeando que é independente, ou seja, não tem rabo preso com ninguém (antigo slogan do principal jornal de um grupo que emprestava seus veículos para torturadores e assassinos de presos políticos). Não por acaso, a grande imprensa, que passa quase todo o tempo denunciando a corrupção das instituições políticas, pressiona movimentos sociais para que se transformem em partidos políticos e restrinjam sua atuação ao mesmíssimo campo institucional que ela denuncia. Não se trata de uma contradição, mas de uma luta político-ideológica para domesticar esses movimentos. Quer dizer que não adianta reclamar da corrupção?

De fato, como se vê, não adianta muito e é pouquíssimo provável que o ficha limpa altere as relações de opressão política e exploração econômica vigentes na sociedade brasileira. Isso é o fundamental. Em um plano mais secundário, só os incompetentes, os descartáveis ou as eventuais vítimas de acidentes de trabalho (no geral, em feroz confronto com seus colegas de profissão) serão pegos. Quer dizer que não adianta lutar contra a corrupção? Êpa! Não foi o que escrevi.

Uma coisa é reclamar e reproduzir bovinamente aquilo do que se reclama. Outra coisa é lutar contra a corrupção de modo consequente, o que implica atacar suas causas. Aí, mais do que reclamar dos “políticos”, cabe levar adiante uma luta política. Mas, para isso, é preciso fazer política de outro modo, com outro tipo de gente e, fundamentalmente, contra o sistema que, ao mercantilizar cada vez mais todas as relações humanas, não deixaria de fora exatamente a atividade política. Sobre isso aí temos assunto para diversos artigos.

*Lucio Flávio Rodrigues de Almeida é cientista político e professor da PUC-SP.

 Fonte: Caros Amigos, 10 Setembro 2010.

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