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terça-feira, 20 de dezembro de 2011

As Regras da Exceção

vithais.com.br

Nadjara Régis*
14 de dezembro de 2011 às 12:59



Em sua obra Psicologia de Massas do Fascismo, Wilhelm Reich, referindo-se a Hitler, afirma que seu êxito não se deveu à sua personalidade. Um pouco antes, à pagina 34 da 3ª edição, publicada em 2001 pela editora Martins Fontes, Reich já havia exposto sua compreensão de que somente quando a estrutura de personalidade do líder corresponde às estruturas de amplos grupos, um “líder” pode fazer história. E mais adiante, à página 38, ele sustenta que foi a estrutura humana autoritária, que teme a liberdade, que possibilitou o êxito da propaganda de Hitler. Neste momento, o que me importa é essa ‘estrutura humana autoritária’. Os autoritários, que se legitimam na sociedade a partir da tentativa de manipulação do medo – o medo da morte – que há em cada pessoa. E quando a sociedade lhe oportuniza o uso dos meios da força, a pessoa autoritária, então, expressa, às avessas, toda sua revolta contra a autoridade a quem costuma ter respeito e submissão.

Fico pensando nessas coisas quando me deparo com situações melindrosamente incompatíveis com o regime democrático constituído desde 1988, no Brasil, capazes de destruir em minutos todas as décadas de pensamento intelectual produzido nacional e internacionalmente e toda a produção legislativa de tratados, acordos e declarações, a respeito dos direitos humanos e das sociedades democráticas. Em 19 de novembro, por volta das 19h45, nas imediações do Max Hipermercado, situado na Avenida Brumado, quatro servidores do Estado da Bahia foram abordados por pessoas que se disseram da polícia:
– Pare o veículo e não olhe para os lados.
– Pára o carro agora filho da puta!
– Virem de costas para a viatura. Coloque a mão na cabeça agora, seu importante!
– Andem de costas, no meio da avenida, ninguém aí olhando pra trás.
– Abram as pernas. Eu quero toda aberta, e quando tiver toda aberta eu quero que abra mais.
– Saia daqui agora, quer levar uma bala na cara, filho da puta.
– Tenente, não tem que dá explicações a ninguém não…
– Engraçadinho…
– Vamos embora!

Fiquei sabendo que durante toda a operação não foi possível aos abordados identificar as pessoas que se diziam policiais. Pessoas inculcadas num espécime de busca paranóica por um veículo Pálio de cor vermelha, e, por isso, conscientemente determinadas em ofender a integridade moral, quiçá física, das vítimas. Sobre o modus operandi deles, sequer as disposições constitucionais que regulam as situações de exceção a direitos e garantias individuais em regime de Estado de Sítio lhes serviriam de justificação.
O que me deixa pasma é que toda aquela “estrutura humana autoritária” foi colocada à disposição da proteção de um bem patrimonial. Pergunto-me: a serviço de que ordem? E foi assim, por uma insurgência irracional, que um diretor de escola estadual, dois professores da rede estadual e um coordenador de hospital estadual viram-se completamente desprotegidos da lei perante figuras de fé pública e porte legal de arma, de modo que fico com a minha convicção de que a sorte teria batido às suas portas se os referidos abordados não fossem, ao cabo, “seus colegas de Estado”.
Esta situação fez-me lembrar um sofrimento por que passei, e que envolveu-me de rancor por uns cinco dias, dos quinze em que me hospedei na Cité Univèrsitaire, em Paris, quando, na saída do Monoprix, uma Loja de Departamento equivalente às Lojas Americanas, aqui no Brasil, fui barrada bruscamente por um segurança armado o qual, baseado em nada, determinou que eu abrisse a mochila para ver se a “turista com cara de estudante” surrupiava alguma mercadoria. Sozinha, em terra estrangeira, nada fiz senão ceder à ‘autoridade’ sem sequer resmungar merecidos impropérios àquele que, revestido de “seu” micropoder, puxava a corda de quem lhe parecia em condição de mais fraco.
Há, pois, um longo caminho cultural para destituir a “família autoritária”, núcleo-base da formação do Estado autoritário, e, assim, resvalar centenas de potenciais “estruturas humanas autoritárias” que inconscientemente promovem o réquiem do totalitarismo em todo o mundo, fazendo com que alguns estudiosos já compreendam o Sistema Internacional de Defesa dos Direitos Humanos como superestrutura de dominação, um discurso falido.
E seja pela história recente de domínio entre países, seja analisando os fatos cotidianos da história da vida privada, é possível perceber ao regime democrático a fragilidade própria de uma borboleta. A violência que se pratica a um, ali, se praticará a outro, acolá, é só uma questão de tempo e de lugar.
Se nas ditaduras a verdade se constrói assimilando-se pelo silêncio o discurso de pensamento único; nas democracias não há verdade sem pensamentos, não há verdade sem palavras. Deixo, aqui, as minhas.


*Nadjara Lima Régis é advogada e Procuradora Geral do Município

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