A Comissão da Verdade e Justiça não pode, pois, ter medo de dizer que possui o direito e o dever de revisar a história.
“Quem sabe se não me cabe, mesmo, o papel desagradável de remexer nas cinzas e de levar até o fim o combate à ditadura, para que ela seja exterminada em seu último e surpreendente refúgio, o da 'transição democrática'?". Quem sabe! Essa desagradável tarefa não é apenas a do sociólogo Florestan Fernandes, mas é a tarefa de Quem.
A ideia da reconciliação nacional aparece dentre os objetivos do projeto de lei que cria a Comissão Nacional da Verdade, sendo substituída pela expressão consolidação da democracia na importantíssima emenda que será proposta pela deputada Luíza Erundina. No entanto, as duas redações não apontam para o horizonte político que deve envolver o debate sobre a Comissão da Verdade e Justiça por sustentarem uma mistificação: a de que já haveria no Brasil uma verdadeira democracia, para cuja completa consolidação apenas alguns passos faltariam.
Quem quer combater a ditadura e o que resta dela precisa ter coragem para colocar em questão o mito da democracia brasileira. Não nos enganemos, advertia Florestan Fernandes, "a democracia burguesa é, em si e por si mesma, uma mistificação: em nome da liberdade, ela cassa a liberdade dos trabalhadores; em nome da igualdade dos cidadãos, impõe a supremacia social da burguesia; em nome da representação, consagra o monopólio do poder pelas elites dirigentes das classes dominantes".
Afinal, Quem diz que a democracia já é uma realidade sugere que o futuro chegou, que o bonde da história estacionou em sua parada final: a democracia brasileira. Mas isso só pode interessar a Quem quer abafar o clamor expectante daqueles setores oprimidos da sociedade civil que, desde a década de 1930, ampliavam seu coro por uma revolução brasileira. Se a ditadura civil-militar veio para garantir o fracasso de uma tentativa de reestruturar o regime de produção sobre novas bases, a democracia que a sucedeu não passa da mais bem acabada forma de realização deste mesmo objetivo. Quem são esses que nunca deixaram o poder, e que negociaram entre si a reconciliação? Quem torturou, Quem matou, Quem ocultou cadáveres? A consolidação deste tipo de regime democrático interessa a Quem.
A fim de que as atrocidades cometidas no passado não se repitam, é essencial a criação de uma Comissão da Verdade e Justiça. O mínimo que se espera deste trabalho é que ele seja capaz de, por um lado, averiguar as violações de direitos humanos e apurar as responsabilidades dos perpetradores de crimes de lesa-humanidade e, por outro, desvelar a cadeia de repressão e a imbricada máquina de destruição arquitetada pelo regime autoritário. Mas há um outro passo ainda mais fundamental.
Para além de discutir a violação dos direitos humanos, a Comissão deve resgatar a memória dos afetados como sujeitos históricos portadores de projetos políticos, e, sobretudo, explicitar a complexa rede de interesses de classe então existentes. Se é preciso dizer claramente Quem torturou, também devemos dar nome a Quem publicou e continua publicando jornais que colaboraram com o regime, que emprestaram seus carros para levar presos políticos a celas de tortura. Deve ser dito Quem matou, mas também Quem governou e continua governando. É preciso dizer Quem ocultou cadáveres, mas também Quem lucrou e continua lucrando com a manutenção da ordem econômica garantida no passado pelo chumbo das Forças Armadas e, no presente, pelas balas verdadeiras ou de borracha de uma polícia, não por acaso, militar.
A Comissão da Verdade e Justiça deve ser capaz de exigir o deslocamento da discussão dos efeitos para a causa, da tortura para a vontade que a motiva, dos direitos humanos para a estrutura do Estado e da sociedade. Quem silencia um discurso não o faz somente escondendo da sociedade documentos oficiais, eternamente sigilosos. Toda censura exige a ção de uma nova versão dos fatos que finge desvelar uma verdade, porque não há melhor mordaça do que a cooptação da testemunha. A Comissão da Verdade e Justiça não pode, pois, ter medo de dizer que possui o direito e o dever de revisar a história.
A verdade não repousa nos fatos à espera da sua pacífica descoberta; tampouco a história é o tempo do desvelamento progressivo da verdade. Verdade e história não são nada além do dito de Quem ganha uma luta: a luta de classes.
Este texto é de autoria do coletivo político Quem.
Quarta-feira, 23 de novembro de 2011
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