MOVIMENTO TODOS PELA EDUCAÇÃO, ORGANIZAÇÕES GLOBO, CABRAL, PAES E COSTIN: ‘AMANSAR’ OS PROFESSORES COM CASSETETES PARA AVANÇAR CONTRA A ESCOLA PÚBLICA
Roberto Leher*
Em
homenagem a Emilio Luiz Pedroso Araújo, um defensor da escola pública popular
O que leva o arco de forças que
reúne Sergio Cabral, Eduardo Paes, seus secretários de educação,
respectivamente, Wilson Risolia e Claudia Costin, a acionar o uso ilegal do
aparato policial para reprimir bestialmente trabalhadores da educação em
generosa luta em prol de uma carreira que valorize a dedicação ao fazer
educacional, a qualificação e a progressão funcional ao longo da vida,
possibilitando que a opção pelo trabalho na escola pública seja um estimulante projeto de vida?
A mesma indagação pode ser
feita sobre os motivos que levam porta-vozes da coalizão empresarial Todos pela
Educação (TPE), como Priscilla Cruz, que vêm a público criticar a politização e
a ideologização da greve[1], posição ecoada de modo viperino pelas organizações
Globo.
Todos juntos, governos, lobby
empresarial, corporações da mídia, desqualificam a greve por ser motivada por
interesses de pequenos grupos e de partidos de esquerda radicais. A despeito do
fato objetivo de que os governos Cabral e Paes não abriram negociações sérias e
objetivas, prolongando a greve, o discurso da referida coalizão promove uma
inversão no nexo causal: se a greve se prolonga é porque assim quer o
sindicato, motivado por interesses escusos de pequenos grupos. A monumental
assembleia de continuidade da greve, realizada no dia 4 de outubro, reunindo
mais de cinco mil corajosos profissionais da educação, evidentemente é uma
vigorosa refutação do bolorento argumento da direita repetido, ad nauseam, no
período da ditadura e que O Globo, após enriquecer com o apoio ativo ao golpe,
agora diz se arrepender.
A mensagem implícita é que os
governos são justos, ágeis nas negociações, fazem o que podem para atender ao
que Risolia e Costin entendem ser “as verdadeiras reivindicações” dos
profissionais da educação, ainda que estas estejam em antípoda em relação a
pauta aprovada nas concorridas assembleias. Quando se torna evidente que o
governo nada irá negociar, o subentendido é que, caso os professores tivessem
verdadeiro amor aos seus alunos, a volta ao trabalho seria rápida e
resignada. Neste prisma, a continuidade
da greve é um gesto hostil aos estudantes e às suas famílias.
Tal narrativa é obtusa, mas
interessada e coerente em relação ao projeto de contrarreforma da educação
pública. O que significa para os profissionais da educação nova postergação no
atendimento de suas verdadeiras reivindicações?
Significa uma opção por viver dramáticas privações econômicas, ausência
de perspectivas para o seu futuro profissional, fadiga pelo trabalho com turmas
lotadas e pela precária infraestrutura da rede, como evidenciado no relatório
do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro[2] (situação igualmente
grave na rede estadual), frustração pela imposição de cartilhas e pacotes
educacionais que secam toda possibilidade da docência e interditam as suas
vozes, jornadas extenuantes que invadem as noites, os finais de semana e mesmo
as férias. Não é difícil concluir que a pauta é necessária para assegurar o
real direito universal à educação pública!
Somente aceitando uma sábia
resignação, diz a representante empresarial, os professores serão reconhecidos
e valorizados pela sociedade! Conforme a peculiar lógica da diretora da
coalização das corporações, quando lutam por uma carreira que fortaleceria a
escola pública, os professores se desgastam ainda mais perante a sociedade.
Novamente, o implícito: um dia vocês serão valorizados. Confiem em nós! Os
governos federal, estaduais, municipais que atuam em conjunto com as
corporações, todos estamos com vocês! Quem já esperou um século, pode esperar
mais algumas décadas! Quanto a imagem pública dos professores, a representante
das corporações nada diz sobre o significado de serem vistos pelo público –
pelos estudantes, pais e pelo conjunto da sociedade – levando rudes golpes de
cassetetes, bombas lançadas do alto das edificações, jatos de spray de pimenta
e balas de borracha. Qual é a imagem que
a referida coalizão produz com os seus atos de violência e barbárie sobre os
profissionais da educação? O que está sendo dito sobre a dignidade e o respeito
a uma categoria tão estruturante da democracia?
Por que a reivindicação de uma
carreira compatível com a docência, no sentido proposto por Marilena Chau í[3],
não teria “relação com os interesses coletivos dos professores” (e dos demais
servidores que são imprescindíveis para a rede pública, desde a garantia de
alimentação saudável para as crianças e do trabalho profissional na secretaria
das unidades escolares, até a constituição de um conjunto de servidores capazes
de imprimir profissionalismo e permanência nos atos administrativos
indispensáveis para a organização administrativa da rede pública)?
Na história da educação
pública, a carreira docente sempre compôs o cerne da política pública para a
educação. Uma carreira comprometida com a escola pública assegura a autonomia
intelectual e a garantia do caráter público da educação, o agir ético como
servidor público e a qualificação para se desincumbir dessa elevada função
pública.
A carreira reivindicada[4]
institui as condições para o ingresso do servidor no serviço público de modo
impessoal, por meio de requisitos de qualificação profissional, provas e exames
de títulos, processo que deve acontecer no bojo do concurso público. Normatiza
as regras de progressão ao longo da vida funcional, valorizando a experiência,
a dedicação e a qualificação, reconhecendo o esforço do servidor da educação em
seguir o seu processo de formação, por meio da especialização, do mestrado e do
doutorado. Define as atividades que compõem o rol da docência e das atividades
técnicas e administrativas, objetivando assegurar a indispensável autonomia
frente aos interesses particularistas de grupos políticos (como o Todos pela
Educação), aos interesses puramente mercantis, como na venda de material
pedagógico (Roberto Marinho,
Alfa&Beto etc.), ao processo de ensino e aprendizagem (recusando o foco no
direito à aprendizagem sem ensino), na garantia da formação cultural,
artística, científica rigorosa, ampla e universal dos estudantes (combatendo a
segregação da educação popular por meio de uma formação minimalista de
competências rudimentares, como preconizado pelas avaliações padronizadas) e,
não menos importante, na possibilidade de dedicação a uma determinada escola,
evitando a condição de professor nômade, hoje instaurada principalmente na rede
pública estadual.
Finalmente, a carreira
normatiza o tempo. Somente assegurando tempo para as atividades fora da sala de
aula, será possível uma docência criativa, fundamentada na ciência, garantindo
as condições objetivas para que os profissionais estejam engajados em estudos
coletivos, pesquisas, planejamento das aulas, avaliação qualitativa do trabalho
dos estudantes, em diálogo com os movimentos sociais, o sindicato, pais e
responsáveis, a comunidade escolar e as universidades.
O valor da remuneração, é
importante frisar, não é o determinante da carreira, mas, por óbvio, é condição
necessária para que a carreira possa garantir a plena dedicação ao trabalho.
Somente com remuneração digna é possível o engajamento arrebatador no trabalho
pedagógico cotidiano. Tal compromisso é incompatível com o sofrimento advindo
da privação econômica, levando os professores a buscarem vários empregos para
compor uma renda minimamente compatível com as necessidades básicas da vida. A degradação
da carreira não provoca apenas sofrimento econômico, mas psicossocial. A opção
pela carreira do magistério, ao ser anunciada por um jovem, provoca reações de
comiseração, sugerindo que é uma opção dos fracassados.
O projeto de carreira imposto
por Eduardo Paes – Claudia Costin [5] é antagônico com o conceito de carreira
docente e dos demais profissionais da educação. Em um contexto de vertiginoso
aumento na produção científica nas ciências da natureza e nas ciências duras e
de grandes desafios diante de problemas que envolvem esses domínios do
conhecimento (energia, agricultura, saúde, aquecimento global,
biotecnologias..), o mestrado e o doutorado nestas áreas nada valem, pois a
única pós-graduação stricto sensu reconhecida é na área de educação: física,
química, matemática, história, geografia, ciências sociais são ignoradas.
Detalhe não irrelevante. Os que realizaram doutorado em educação somente terão seus títulos reconhecidos se a
Prefeitura tiver recursos!
Como se não bastasse tal
irracionalidade, somente os servidores em regime de 40 horas poderão ser
inseridos no novo plano, restringindo o seu alcance para menos de 10% do total.
Objetivamente, os profissionais da educação que ocupam cargos de magistério de
16h, 22 h 30 min e 30 h estão excluídos do enquadramento no Plano. O governo afirma que futuramente poderá abrir
novas oportunidades de ampliação da carga horária para 40h, mas tal opção irá
depender da disponibilidade financeira e da vontade monocrática da Prefeitura.
Também os professores do primeiro segmento do ensino fundamental e da educação
infantil que realizaram concurso aberto aos que possuíam a formação em nível
“normal”, igualmente não poderão ser enquadrados, ainda que tenham nível
superior, pois somente os que realizaram concurso para nível superior poderão
ser inseridos na nova carreira.
A rigor, é um plano que não
valoriza a qualificação tão proclamada como indispensável, desconsidera a
formação em vários domínios do conhecimento e, ao restringir o universo dos
possíveis beneficiados, sobressai um dos objetivos não proclamados do novo
plano: a redução do impacto orçamentário do plano. As prioridades, na gestão
Paes, estão vinculadas aos negócios imobiliários e aos grandes eventos da
cidade-mercadoria. A formação dos
estudantes, a carreira dos profissionais, a escola pública são as grandes
perdedoras do novo plano.
O plano não contempla a
valorização funcional ao longo do tempo de carreira, um dos pilares de qualquer
carreira magisterial. No lugar de uma
valorização por toda vida laboral, no caso da educação básica, ao menos de 25
anos, o plano restringe a onze anos o tempo para progressão, mantendo apenas as
quatro classes atualmente existentes.
Examinando as carreiras
magisteriais dos países da OCDE, em geral a diferença entre o início e o final
da carreira é superior a 300%. Conforme o plano Paes-Costin, após 25 anos de
magistério, um professor terá seu salário 26,5% maior do que no início da
carreira. Por sua vez, uma Agente Auxiliar de Creche receberá por tempo de
serviço, no máximo 7,7% em toda sua carreira! A “valorização” por formação é
desconcertantemente irrisória: depois de cursar pós-graduação, mestrado e
doutorado, um professor estará recebendo apenas 15% a mais do que um graduado[6].
Um dos princípios mais axiais da luta magisterial, a paridade entre os ativos e
aposentados, é desconsiderada, como se os aposentados, após a dedicação de suas
vidas à educação, pudessem ser descartados, esquecidos e submetidos a
progressivo empobrecimento.
Por tudo isso, é possível
concluir que a greve dos profissionais da educação pública, iniciada em 8 de
agosto de 2013, é um movimento em prol do futuro da escola pública.
Alternativamente, a política Cabral-Risolia e Paes-Costin, afinal referenciada,
como a do MEC, na agenda do TPE, é incompatível com a escola pública capaz de
assegurar uma formação cultural e científica integral, plena, a todos os que
possuem um rosto humano. Frente ao projeto em curso, o uso da violência extrema
não surpreende, pois, onde houver um professor que se volte contra o pacote
educacional que impõe o apartheid educacional, haverá uma voz a ser silenciada:
pelos manuais do ABC pedagógico introduzidos por corporações e, sempre que
necessário, pela violência policial. O que as forças do atraso não perceberam é
que o clamor pela educação pública pulsa nas escolas e nas ruas e o projeto de
conversão das escolas em ‘organizações’ dirigidas pelas corporações não
passará!
Rio de Janeiro, 5 de outubro de
2013
* Roberto Leher é professor
titular da Faculdade de Educação da UFRJ e de seu Programa de Pós-Graduação,
colaborador da ENFF e pesquisador do CNPq.
[1] . Priscila Cruz,
diretora-executiva do Todos pela Educação, Prejuízo silencioso. O Globo,
1/10/13.
[2] . http://www.tcm.rj.gov.br/WEB/Site/noticias.aspx?Categoria=61
[3]CHAUÍ, M. A universidade
operacional. Folha de São Paulo, Caderno Mais! 09 Maio 1999.
[4]
http://www.seperj.org.br/admin/fotos/boletim/boletim327.pdf
[5]
http://www.seperj.org.br/admin/fotos/boletim/boletim326.pdf
[6] Informações obtidas a
partir do estudo realizado para o mandato do vereador Renato Cinco, PSOL-RJ.
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