É pelo rastro que se conhece o
tamanho da onça.
Sabedoria popular brasileira
Classes sociais não devem ser percebidas como
uma categoria sociológica abstrata. Nada pode fazer sentido quando se despreza
a geografia e a história, portanto, o espaço e o tempo. O principal traço
peculiar da evolução do capitalismo na América Portuguesa, depois no Brasil, é
que ele se implantou da forma mais atroz, desumana e bárbara possível,
recorrendo à escravidão como relação de trabalho dominante, em escala sem
paralelo no mundo nos últimos mil e quinhentos anos.
O Brasil permanece muito diferente dos
seus vizinhos sul-americanos de colonização espanhola, por muitas
determinações, todavia, esta é a principal. Houve escravidão em muitas outras
colônias das Américas. No entanto, nenhuma nação contemporânea conheceu em sua
história escravidão negra em tão larga proporção, e por tanto tempo como o
Brasil. [1]
Sem compreender o significado histórico
da escravidão é impossível decifrar a especificidade da formação da burguesia
no Brasil. Mas, tampouco, é possível entender a formação da classe trabalhadora
brasileira. O capitalismo no Brasil, entendido como capitalismo comercial, não
foi tardio. Tardia foi a urbanização e, sobretudo, a industrialização.
As raízes ideológicas do racismo que
envenena a maioria das classes médias, que são o núcleo duro da base social que
sustenta a dominação de classe, repousam, inteiramente, na herança deixada pela
escravidão. O mito da democracia racial brasileira é um discurso perigoso,
porque ainda é muito poderoso. A importância central do tema da escravidão, uma
relação social pré-capitalista, para a compreensão das tarefas da revolução
brasileira não se reduz a um debate historiográfico, porque tem consequências
políticas programáticas.
Três correntes debateram no interior do
marxismo, pelo menos desde meados do século XX, o sentido da colonização
ibérica. O estalinismo defendeu a tese de que ela teria sido feudal. Gunder
Franck respondeu defendendo que teria sido diretamente capitalista. Em 1948,
Nahuel Moreno defendeu em Cuatro Tesis sobre la colonización española y portuguesa en América, uma
terceira posição. O processo teria sido mais complexo, porque resultado de um
amálgama entre interesses capitalistas, relações sociais escravistas e formas
feudais, portanto, uma formação social histórica original. Em uma interpretação
desta discussão historiográfica, anos depois afirmou:
“El
marxismo latinoamericano se educó bajo la influencia de un seudo marxismo que
había abrevado en las fuentes de los historiadores liberales. Estos pregonaban una supuesta colonización feudal por parte de España y
Portugal que había sido el origen de nuestro retraso con respecto a Estados
Unidos de Norteamérica. Ese falso esquema de la colonización ha sido suplantado
en algunos medios marxistas por otro tan peligroso como el anterior: la
colonización latinoamericana fue directamente capitalista. Gunder Frank es uno
de los más importantes representantes de esta nueva corriente de interpretación
marxista. Como bien cita George Novack, éste afirma categóricamente que “ el
capitalismo comienza a penetrar, a formar, a caracterizar por completo a
Latinoamérica (…) ya en el siglo XVI.” Producción y descubrimientos por
objetivos capitalistas; relaciones esclavas o semi‑esclavas; formas y
terminologías
feudales (al igual que el capitalismo mediterráneo) son los tres
pilares en que se asentó la colonización de América”. [2] (grifo nosso)
A colonização do Brasil foi motivada
por interesses capitalistas. Muito antes da independência, já existia uma
classe dominante luso-brasileira com características burguesas, embora as
relações sociais fossem pré-capitalistas. A acumulação capitalista precedeu,
portanto, a abolição da escravidão. Existiam assalariados desde os tempos da
América portuguesa, mas esta relação de trabalho era marginal. Por aqui a
burguesia começou a se formar no século XVI. Mas o proletariado surge como
classe, ainda assim muito embrionariamente, somente no final do século XIX, alguns
séculos mais tarde. Como alertou, pioneiramente nos anos quarenta, Caio Prado
Júnior:
“A situação do Brasil se
apresenta de forma distinta, pois na base e origem da nossa estrutura e
organização agrária, não encontramos, tal como na Europa, uma economia
camponesa, e sim a mesma grande exploração rural que se perpetuou desde o
início da colonização brasileira até nossos dias; e se adaptou ao sistema
capitalista de produção através de um processo ainda em pleno desenvolvimento e
não inteiramente completado (sobretudo naquilo que mais interessa ao
trabalhador), de substituição do trabalho escravo pelo trabalho juridicamente
livre.” [3]
Se avaliarmos a escala nacional, só
podemos considerar uma presença da classe operária em alguns poucos centros urbanos
depois dos anos trinta do século XX e, de forma mais expressiva, somente depois
dos anos cinquenta, quando ainda quase metade da população vivia no mundo
rural.
Esta assimetria do processo
histórico-social de formação das duas classes mais importantes da atual
sociedade brasileira potencializou no marxismo duas posições opostas, que
podemos classificar, simplificando, como os produtivistas e os
circulacionistas. A primeira e mais influente foi a daqueles que não admitiam a
possibilidade da existência de uma colonização capitalista desde a invasão
portuguesa. Insistiram durante décadas na defesa esdrúxula de que teria
existido feudalismo no Brasil. Alberto Passos Guimarães e sua obra Quatro
séculos de latifúndio conseguiu grande repercussão.[4]
Defenderam que uma sociedade deve ser
caracterizada, historicamente, pelas relações de produção dominantes. Afirmaram
que o que caracteriza o capitalismo é o trabalho assalariado. Se o trabalho
assalariado não é dominante, a sociedade não é capitalista.
A outra posição, embora oposta pelo
vértice, era igualmente unilateral. Os circulacionistas afirmavam que a
colonização tinha sido, sumariamente, capitalista, desprezando o fato
monumental de que o escravismo criou raízes profundas em quase quatro séculos
de existência. A Organização Revolucionária Marxista-Política Operária, POLOP,
por exemplo, assumiu esta interpretação para concluir a necessidade de um
programa diretamente socialista ou anticapitalista, diminuindo a importância
das tarefas democráticas da revolução brasileira. [5]
Jacob Gorender tentou solucionar o debate
com uma elaboração inspirada, ainda que sob forte influência estruturalista,
sugerindo que o Brasil conheceu um modo de produção próprio, o escravista
colonial.[6]
O Brasil é ainda um país muito atrasado.
É atrasado econômica, social, política e culturalmente. É dramaticamente
atrasado em termos educacionais quando comparado com nações em estágio
semelhante de desenvolvimento econômico. Atrasado, portanto, em toda a linha.
Mas é, ao mesmo tempo, o maior parque industrial do hemisfério sul do planeta,
e uma das maiores economias capitalistas do mundo contemporâneo, com doze
cidades com um milhão ou mais de habitantes, e 85% da população economicamente
ativa em centros urbanos.
Só utilizando os recursos marxistas da
lei do desenvolvimento desigual e combinado é possível equacionar a principal
das peculiaridades brasileiras: o capitalismo usou em escala insólita a mão de
obra escrava. O que nos remete ao debate estratégico sobre o programa. Nas palavras de Moreno:
“Esta discusión teórica no es una polémica académica
sin relaciones con la política. Las tesis de la revolución permanente no son
las tesis de la mera revolución socialista, sino de la combinación de las dos
revoluciones, democrático burguesa y socialista. La necesidad de esa
combinación surge inexorablemente de las estructuras económico sociales de
nuestros países atrasados, que combinan distintos segmentos, formas,
relaciones de producción y de clase. Si la colonización fue desde un principio
capitalista no cabe más que la revolución socialista en Latinoamérica y no una
combinación y supeditación de la revolución democrático burguesa a la
revolución socialista. [7]
(Grifo nosso)
Não é possível lutar, seriamente, pela
mudança da sociedade em que vivemos, sem compreender como ela é. Em perspectiva
marxista esta análise deve identificar quais são os sujeitos sociais
interessados na transformação. Uma das peculiaridades que distingue o Brasil é
que este proletariado tardio é um dos mais poderosos do mundo. A força da
classe trabalhadora brasileira repousou e se explica, em grande medida, pelo
seu gigantismo, pela concentração e pela sua juventude. Essa juventude,
paradoxalmente, foi até hoje, também, a sua fraqueza. Porque a atual classe
trabalhadora brasileira se formou, majoritariamente, pelo deslocamento para as
cidades, em processo muito intenso e acelerado de migrações internas, da
população descendente, em sua maioria, dos afro-brasileiros cujos ancestrais
foram escravos.
A revolução brasileira tem pela frente
o desafio de ser uma revolução social anticapitalista, ou seja, a expropriação
dos monopólios, porque a classe trabalhadora deverá ser o seu principal sujeito
social. Mas só poderá triunfar se tomar como sua as bandeiras democráticas das
tarefas inacabadas deixadas para trás pela impotência burguesa. Essa revolução
democrática tem muitas e variadas tarefas. Tem tarefas civilizatórias, como a
erradicação da corrupção, a demarcação das terras indígenas, o fim das
desigualdades regionais. Tem tarefas de libertação nacional na luta contra a
ordem imperialista. Tem tarefas agrárias contra o latifúndio. Só poderá
triunfar, contudo, se for também uma revolução negra.
Notas:
[1] O primeiro censo nacional
foi realizado entre 1870/72. O questionário era de difícil transcrição e
apuração. Embora tenha sido feito em condições, especialmente, precárias, sua
importância como fonte não merece ser diminuída. Sobre uma população próxima a
dez milhões ou, mais exatamente 9.930.478, a população escrava era ainda um
pouco maior que um milhão e meio, ou, mais precisamente de 1.510.806, sendo
805.170 homens e 705.636 mulheres. Estudos demográficos históricos são somente
aproximações de grandeza, mas estima-se que nunca deve ter sido menor que um
terço do total até 1850, e pode ter sido próxima à metade, ou pelo menos 40% no
século XVIII, no auge da exploração do ouro das Minas Gerais. PUBLICAÇÃO
CRÍTICA DO RECENSEAMENTO GERAL DO IMPÉRIO DO BRASIL DE 1872 do Núcleo de
Pesquisa em História Econômica e Demográfica - NPHED da UFMG. Consulta em
dezembro 2014. Disponível em:
www.nphed.cedeplar.ufmg.br/.../Relatorio_preliminar_1872_site_nphed.
[2] Ainda mais claro: No inauguraron un sistema de
producción capitalista porque no había en América un ejército de trabajadores
libres en el mercado. Es así como los colonizadores para poder explotar capitalisticamente
a América se ven obligados a recurrir a relaciones de producción no
capitalista: la esclavitud o una semi‑esclavitud
de los indígenas. MORENO, Nahuel. Cuatro Tesis sobre la colonización española y portuguesa en América.
https://www.marxists.org/espanol/moreno/obras/01_nm.htm Consulta em dezembro de
2014.
[3] Ou ainda mais claro em O
sentido da colonização: “Coloquemo-nos naquela Europa anterior ao séc. XVI,
isolada dos trópicos, só indireta e longinquamente acessíveis, e imaginemo-la,
como de fato estava, privada quase inteiramente de produtos que se hoje, pela
sua banalidade, parecem secundários, eram então prezados como requintes de
luxo. Tome-se ocaso do açúcar; que embora se cultivasse em pequena escala na
Sicília, era artigo de grande raridade e muita procura; até nos enxovais de
rainhas ele chegou a figurar como dote precioso e altamente prezado(...) Isto
nos dá a medida do que representariam os trópicos como atrativo para a fria
Europa, situada tão longe deles(...) É isto que estimulará a ocupação dos
trópicos americanos. Mas trazendo este agudo interesse, o colono europeu não
traria com ele a disposição de pôr-lhe a serviço, neste meio tão difícil e
estranho, a energia do seu trabalho físico. Viria como dirigente da produção de
gêneros de grande valor comercial, como empresário de um negócio rendoso; mas
só a contragosto como trabalhador. Outros trabalhariam para ele.” PRADO JÚNIOR, Caio. In Formação do Brasil
Contemporâneo, Brasiliense/Publifolha, 2000, p.29.
[4] Sobre a interpretação da
hipótese de feudalismo, Alberto Passos Guimarães é representativo: “A simples
eliminação em nossa História da essência feudal do sistema latifundiário
brasileiro e a consequente suposição de que iniciamos nossa vida econômica sob
o signo da formação social capitalista significa, nada mais nada menos,
considerar uma excrescência, tachar de supérflua qualquer mudança ou reforma
profunda de nossa estrutura agrária.” GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos
de latifúndio. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1968, p.33.
[5] REIS FILHO, D.A. & SÁ,
J. F. de. [Org.] Imagens da revolução: documentos políticos das organizações
clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.
[6] Mário Maestri resgatou,
merecidamente, este trabalho do esquecimento: “Em O escravismo colonial,
Gorender superava a tradicional apresentação cronológica de cunho historicista
do passado do Brasil para definir em forma categorial-sistemática sua estrutura
escravista colonial. Ou seja, empreendia estudo “estrutural” daquela realidade,
para penetrar “as aparências fenomenais e revelar” sua “estrutura essencial”.
Isto é, seus elementos e conexões internos e o movimento de suas contradições.”
MAESTRI, Mário O Escravismo Colonial: A revolução Copernicana de Jacob Gorender.
http://www.espacoacademico.com.br/035/35maestri.htm#_ftn23.
Consulta em dezembro 2014
[7] IDEM.
https://www.marxists.org/espanol/moreno/obras/01_nm.htm. Consulta em
dezembro de 2014.
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