07/12/2014
Comissão da Verdade do Rio
encontra prontuários médicos de presos no arquivo do ex-presidente
JULIANA DAL PIVA
Rio - Durante décadas a cúpula
do governo militar negou a prática de tortura contra presos políticos na
ditadura. Não importavam as denúncias das famílias, as marcas ou sequelas das
vítimas. Quase 30 anos após o fim do regime, surgem agora as primeiras provas
documentais de que no auge da repressão política — 1970 — o próprio general e
então presidente da República Emílio Garrastazu Médici sabia em detalhes sobre
a violência dos quartéis e suas consequências físicas e psicológicas.
Médici e o caderno onde
guardava os relatos das sequelas das torturas de presas políticas no Rio. Foto: Divulgação
Médici guardou até a morte, em
meio a 32 caixas de manuscritos, um caderno de capa de couro preta com o nome
do ex-presidente timbrado em letras douradas na frente. Dentro, a revelação:
três prontuários médicos de presas políticas atendidas no Hospital Central do
Exército (HCE). São elas: Dalva Bonet,Francisca Abigail Paranhos, além dos
documentos de Vera Sílvia Magalhães — conhecida por sua participação no sequestro
do embaixador americano Charles Elbrick.
O arquivo pessoal de Médici,
doado pela família há 10 anos, integra o acervo do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB) e foi disponibilizado para pesquisa da Comissão da
Verdade do Rio, que localizou os prontuários. “Quanto mais temos acesso aos
documentos, confirmamos que a cadeia de comando das torturas e desaparecimentos
começava no Palácio do Planalto”, afirma Wadih Damous, presidente da CEV-Rio.
Cópias dos documentos serão entregues às famílias em audiência pública na
próxima terça-feira.
O prontuário de Vera Sílvia
detalha cada medicamento utilizado por ela durante os dois períodos de
internação registrados. Presa em 6 de março de 1970, ela chegou pela primeira
vez ao HCE transferida do Hospital Souza Aguiar no dia seguinte devido a um
“traumatismo craniano encefálico por projétil de arma de fogo”. Tratada na
unidade, ela foi liberada dias depois para interrogatório no DOI-Codi.
Em 18 de maio foi internada
novamente, e a descrição do quadro dá a medida do sofrimento de Vera. “Paciente
acentuadamente desnutrida, subfebril. O exame neurológico acusa sensível
diminuição da força muscular nos membros inferiores...há acentuada hipertrofia
muscular nos membros inferiores”, registra o prontuário. O diagnóstico, porém,
foi de que ela estava com uma paralisia nas pernas devido a razões
psicológicas.
O médico legista Levi Inima,
que auxilia a pesquisa da CEV-Rio, disse que a avaliação é “falsa”. “As
alterações em termos de hipotrofia muscular demonstram a tortura em pau de
arara. Ela estava bastante desnutrida, o que mostra os maus-tratos”, explicou.
Vera deixou o Brasil em junho de 1970, trocada pelo embaixador alemão. Ela retornou
após a anistia e morreu devido a um câncer em 2007.
Choque elétrico provocou crises
convulsivas
Ao saber que seu prontuário
médico fazia parte do arquivo pessoal do presidente Médici, a tradutora Maria
Dalva Bonet, 68 anos, olha para alto e respira fundo. “Vou precisar de um tempo
para poder falar sobre isso. É inacreditável”, desabafa Dalva.
Militante do Partido Comunista
Revolucionário Brasileiro (PCBR), ela diz que foi presa no fim de janeiro de
1970 junto com a amiga inseparável, Abigail. “Foram 72 horas de pancadaria. Eu
estava com a pele toda descascada do choque e me jogaram no chão de cimento.
Foi quando eu comecei a ter hemorragia. Os presos pressionaram e eles me
levaram para o HCE”, conta Dalva.
Ela diz que ficou cinco meses
sem andar devido à tortura no pau de arara. Além disso, os choques
desenvolveram um quadro de epilepsia. Por isso, como o próprio prontuário
encontrado registra, foram realizados exames neurológicos. “Eles queriam dizer
que as convulsões que eu passei a ter eram preexistentes. Mas eu nunca tive
nada”, diz ela. Dalva disse que sofreu com crises convulsivas durante 10 anos.
Segundo o diagnóstico feito no
HCE, a paralisia de suas pernas também seria emocional — como a de Vera.“Não
apresenta vontade de locomover-se; procura queixar-se de tudo e de todos; é
impertinente e astuciosa. Costuma ser acometida por pesadelos”, descreve o
documento.
Maria Dalva Bonet ficou cinco
meses sem conseguir andar devido à tortura no pau de arara. Ela também
desenvolveu epilepsia por 10 anos
Foto: Severino Silva / Agência O Dia
O médico legista Levi Inima
também chamou a atenção para a quantidade de tranquilizantes, ansiolíticos e
sedativos como Mandrix e Kiatrium ministrados. “ É uma associação de vários
medicamentos. Isso tudo faz parte de um cenário médico exatamente para suprimir
a questão da tortura”, explica Inima.
'Não deseja recuperar-se'
A advogada Francisca Abigail
Paranhos também teve a sua passagem pelo Hospital Central do Exército guardada
por Médici. No relatório que segue com o prontuário ela é descrita como
“indiciada em inquérito policial-militar pelos crimes praticados como membro do
PCBR, alegou paralisação dos membros inferiores”.
Além disso, o diagnóstico diz
que Abigail, como era conhecida, não ajudava na melhora de seu quadro de saúde.
“Os exames revelaram que Abigail é portadora de depressão neurótica, que não
deseja recuperar-se não colaborando para o sucesso do tratamento que lhe é
ministrado”, finaliza o relatório.
Dalva diz que elas deixaram a
prisão cerca de um ano e meio depois. Abigail morreu de câncer em 1994.
Fonte: O Dia
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