Por Valerio Arcary*
19 DE DEZEMBRO DE 2014
“Conheces o marinheiro,
quando vem a tempestade”
Sabedoria
popular portuguesa
“Mais vale ficar
vermelho cinco minutos, que amarelo toda a vida”
Sabedoria
popular brasileira
Eis a questão metodológica
central em uma análise marxista: a análise da transformação na correlação de
forças social deve orientar a interpretação da mudança nas relações de força
eleitorais, e não o contrário.
A correlação de forças não
evoluiu, desfavoravelmente, para a classe trabalhadora e os seus aliados depois
de junho, embora o resultado das eleições, mesmo com a reeleição de Dilma,
tenha sido um castigo para o PT. O reformismo anêmico quase foi derrotado.
Confundir os dois processos só pode conduzir a conclusões unilaterais, como
aquela que insiste na versão da “onda conservadora”.
A crise do lulismo está
revelando um descontentamento crescente de parcelas cada vez mais amplas da
classe trabalhadora com os governos de coalizão. A decadência do PT poderá
evoluir para uma ruína de toda a esquerda? Sim, pode. Mas está colocada,
também, outra possibilidade, muito menos pessimista. A fadiga de frações do
proletariado com os limites do lulismo pode favorecer a reorganização da
oposição de esquerda.
Uma mudança na relação de
forças entre as classes
Esta mudança nas relações de
força tem muitas refrações diferentes, e com peso social diverso: maior divisão
burguesa sob a pressão da desaceleração econômica, com frações
reposicionando-se por um ajuste fiscal severo, enquanto outras insistem na
defesa de um papel regulador mais forte do Estado para defesa da indústria;
fortes deslocamentos das classes médias que tendem à polarização, tanto à
direita como à esquerda, com o enfraquecimento das posições mais moderadas ao
centro; gigantesco desgaste institucional provocado por escândalos de dimensões
bíblicas; um relançamento de ativismo sindical que vinha de 2012 e, segundo o
DIEESE, se manteve com o maior número de greves desde os anos 1980; um aumento
de escala na capacidade de impacto de ocupações de movimentos populares; um
relançamento com base de massas ampliada do movimento de mulheres etc.
Uma mudança na relação de
forças eleitorais
Já em termos eleitorais, se
compararmos o mapa eleitoral de 1989 com o de 2014, a votação do PT se inverte:
desta vez o PT perde em 15 das 27 capitais do país e na maioria das grandes e
médias cidades, incluindo importantes cidades operárias. O PT perdeu em todas
as capitais do Sul: Porto Alegre, Florianópolis e Curitiba. Perdeu em quase
todas do Sudeste. Ganhou raspando no Rio (50,79% - PT/ 49,21% - PSDB) e perdeu
em São Paulo; Belo Horizonte, Vitória. Perdeu nas capitais do Centro-Oeste:
Brasília, Goiânia, Cuiabá, Campo Grande. No Norte, perdeu em Belém, Rio Branco,
Porto Velho, Palmas e Boa Vista. Em São Paulo, o PT perdeu não apenas na
capital, mas também na maioria das grandes cidades, como Campinas, Santos e São
José dos Campos e também no antes chamado cinturão vermelho, ou seja, em quase
toda a Grande São Paulo (Santo André, São Bernardo, Guarulhos, Osasco). O PT
ganhou em todas as capitais do Nordeste e também cidades importantes do Rio,
como na Baixada Fluminense (Caxias e Nova Iguaçu) e São Gonçalo. Mas, no
resultado geral, o PT ganhou nas cidades menores: 2.528 municípios dos 3.879
com até 15 mil eleitores. Também ganhou nos municípios pequenos (entre 15 e 75
mil eleitores) – 882 dos 1.418. E perdeu em 100 das 179 cidades médias com mais
de 75 mil eleitores, em 46 das 77 cidades entre 200 mil e 900 mil eleitores; e
em 7 das 12 maiores cidades do Brasil.
Junho de 2013 é a chave para
uma interpretação marxista
Qual deve ser a principal
conclusão da conquista, muito apertada, de um quarto mandato pelo PT? É
possível discernir um vínculo entre junho de 2013 e outubro de 2014? Junho
desafiou a estabilidade político-social ao colocar nas ruas milhões de jovens,
pela primeira vez nos últimos doze anos, e isso foi grandioso.
Mesmo se avaliada a intervenção
manipuladora dos meios de comunicação. Mesmo quando considerada a ação de
provocadores de extrema-direita. Mesmo que ponderada a ação ultra-esquerdista
dos black blocks. As aspirações democráticas (denúncia do papel repressivo da
polícia e denúncia da corrupção) e a reivindicação de direitos sociais como a
educação, a saúde e o transporte públicos eram justas e necessárias.
O mais importante, contudo, é
que parece estar em curso uma transformação essencial na relação dos batalhões
mais concentrados da classe trabalhadora com o lulismo e o governo. Iniciou-se
uma ruptura de massas, na escala de muitas dezenas de milhões, de setores do
proletariado com o PT. Essa relação de confiança prevaleceu por trinta anos, ou
seja, o intervalo de uma geração. Chamamos a este processo o princípio do fim
do lulismo. Aqueles que caracterizam este processo como onda conservadora,
impressionados pela votação de Aécio em grandes centros operários, estão
sobrevalorizando um dos aspectos da nova situação.
Este processo de ruptura com o
PT está sendo, como seria previsível, muito desigual, porque muito maior no Sul
e Sudeste do que no Norte e Nordeste do país. Mas pode ser muito progressivo,
se vier a confirmar-se uma maior disposição de luta e resistência do
proletariado. Sem o desmoronamento do velho, o novo não pode surgir. Os ritmos
dos dois processos não são os mesmos. Mas a crise da autoridade do PT abre a
possibilidade de fortalecimento de novos instrumentos de luta, para ir além da
CUT e da Força Sindical, nos grandes sindicatos ainda sob influência da
burocracia sindical. E favorece a aceleração da reorganização da esquerda.
O processo de crise do lulismo
poderá ser revertido em um quarto mandato do governo de coalizão liderado pelo
PT? Ou se aprofundará, em consequência das medidas de ajuste e austeridade
previstas? Qual das dinâmicas político-sociais prevalecerá? Maior ativismo
sindical e resistência política da classe trabalhadora? Desgaste do lulismo
diante das concessões do segundo governo Dilma às pressões da classe dominante?
Fortalecimento da oposição de esquerda? Ou um realinhamento político face ao
governo, como no giro anti-Aécio que assistimos no segundo turno de 2014?
A crise do lulismo
A crise do lulismo está
condicionada, como todo fenômeno complexo, por muitos fatores. Entre muitos
outros, a estagnação econômica, a inflação crescente, a corrosão da corrupção
endêmica, a ruína de mais de uma década de políticas social-liberais, a
transição demográfica (uma nova geração adulta que não viveu os anos 80), além
da impotência diante de uma agenda de reivindicações amplas contra as opressões
(legalização do aborto, criminalização da homofobia, equidade para
afrodescendentes). Dependerá, por exemplo, dos posicionamentos que o novo
governo venha a ter diante dos ultimatos de frações burguesas que exigem um
superávit primário mais alto, a redução de gastos públicos, a contenção salarial
etc. Mas dependerá, também, da capacidade da oposição de esquerda de responder
ao processo de reorganização por baixo que já começou nos locais de trabalho.
A hipótese central deste artigo
é que o mais determinante, de junho de 2013 a outubro de 2014, parece ter sido
o efeito síntese de uma lenta acumulação de mal estar social: a mudança da
relação social de forças entre as classes. Maior inquietação burguesa,
oscilações febris da classe média e o nível mais elevado de atividade grevista
são indicadores consistentes. É na estrutura da sociedade que encontraremos a
chave para a análise dos deslocamentos na superestrutura. A temperatura
político-social do país está mais alta, porque aumentou a ansiedade, a
apreensão, a aflição de todas as classes, inseguras diante do futuro, e
preocupadas em não perder as posições anteriores. Esta dinâmica explica o
início de uma polarização mais intensa que apareceu na campanha eleitoral.
O governo Dilma já tinha sido
atingido pelas ondas de choque de junho de 2013 e saiu mais frágil das eleições
de 2014. A estabilidade do regime democrático, uma das principais conquistas da
solidez da dominação política desde 1994/95, foi desequilibrada por junho de
2013. As eleições de 2014 foram uma confirmação de que uma nova situação se
abriu: o tsunami da candidatura Marina Silva; a recuperação da oposição
burguesa com Aécio; o impacto da audiência minoritária, porém, importante das
candidaturas da esquerda socialista, especialmente, de Luciana Genro pelo PSOL;
a reação de massas aos discursos homofóbicos e machistas das candidaturas da
extrema-direita; e a montanha russa do segundo turno.
Se a crise do lulismo
favorecerá ou não uma reorganização pela esquerda é algo ainda incerto, que
será decidido pela luta de classes, mas é possível. Os quase dois milhões de
votos na esquerda socialista através do PSOL, PSTU e PCB não são senão uma
pequena parcela da audiência que foi conquistada entre a juventude e o
proletariado. Mas é isso que esteve em disputa, tanto em junho de 2013 quanto em
2014.
O que está em disputa não é o
destino do governo Dilma
É isso que esteve e permanecerá
em disputa, não o destino do governo Dilma. A nomeação de Joaquim Levy para a
Fazenda, de Nelson Barbosa para o Planejamento, e a permanência de Tombini no
Banco Central, com a missão de tranquilizar os investidores, não permite
qualquer dúvida de que a orientação do governo Dilma para o quarto mandato do
governo do PT será de austeridade contra os trabalhadores. Ainda assim, a
classe dominante elevará o tom de exigências sobre Brasília.
O que não significa concluir
que a crise do lulismo será uma evolução linear, e à esquerda, da consciência
média dos trabalhadores, como ficou claro pelo papel de Marina Silva no
primeiro turno de 2014, e pelo fortalecimento do PSDB e crescimento de Aécio
Neves durante o segundo turno. Mesmo que deformadamente, a votação sinaliza a
fadiga de uma parcela ampla da classe trabalhadora com o lulismo. A votação não
permite concluir que prevaleceu o desejo de continuidade.
Dilma se apresentou como a
protagonista de um novo governo para poder vencer. Tampouco autoriza conclusões
sobre o arraste de uma “onda conservadora”. Aécio precisou se mascarar, e
defendeu até o fim do fator previdenciário que atormenta e adia a aposentadoria
dos trabalhadores. Mesmo se é verdade que a oposição de direita saiu reforçada
das eleições, também é significativo um fenômeno novo: ainda que minoritária, a
extrema-direita “saiu do armário”, mais desafiadora que em junho de 2013.
Diretas já, Fora Collor, Junho
de 2013
Um pouco de perspectiva
histórica nos ajuda a compreender as relações entre junho de 2013 e outubro de
2014. Não se deve julgar um processo de luta pelos seus resultados imediatos.
Em 1984, quando das Diretas Já, na fase final da luta contra a ditadura
militar, a campanha mobilizou algo em torno de oito milhões de pessoas, que
correspondiam a 20% da população economicamente ativa. Foi a maior mobilização
política da história da nação, mas dirigida pelo PMDB de Tancredo, Ulysses e
Montoro, e o PDT de Brizola.
O resultado das Diretas Já foi
paradoxal: derrotou o governo Figueiredo, mas não foi capaz de derrubar a
ditadura. José Sarney, o último presidente da Arena/PDS, acabou sendo o
primeiro presidente do regime democrático, sem que tivessem ocorrido eleições.
O programa das Diretas Já era estritamente democrático-liberal, e os
trabalhadores estiveram nas ruas sem uma plataforma de reivindicações próprias.
O PT ocupou um papel de codireção, subordinado à liderança burguesa, mas foi
nesse processo que Lula e o PT se consolidaram como a referência nacional de
esquerda.
Relembrar as Diretas Já pode
ser útil para contextualizarmos o hiato, a defasagem, ou a discrepância, muito
comum na história, entre as enormes energias liberadas em processos de luta de
massas e as esperanças por elas despertadas, e os seus resultados. As Diretas
Já foram uma campanha progressiva, porque colocaram em movimento milhões de
pessoas, até então politicamente inativas, em choque direto contra a ditadura
militar no poder por vinte anos.
Já a eleição da chapa Tancredo
Neves/José Sarney no Colégio Eleitoral foi uma usurpação reacionária, mas
efêmera, das ilusões populares. O prestígio inicial do governo Sarney, que se
proclamou, ostensivamente, como Nova República foi como fogo de palha: brilhou
intensamente, mas por pouco tempo. Entre 1987 e 1989, o Brasil conheceu a onda
grevista mais importante de toda a sua história. E Lula foi para o segundo
turno nas primeiras eleições presidenciais, derrotando Brizola, para terminar
sendo vencido por Collor.
Em junho de 2013, depois de
mais de dez anos de governos liderados pelo PT, uma explosão espontânea levou
algo em torno a pelo menos dois milhões de pessoas às ruas em protestos com
reivindicações, essencialmente ou somente democráticas, mas que merecem ser
comparados com as mobilizações de 1984. Ou, também, com as mobilizações pelo
Fora Collor em 1992, que culminaram com o impeachment de Collor.
Entretanto, ao contrário de
1984 e 1992, desta vez, em 2013, nenhum aparelho político teve papel
significativo. Por serem acéfalas, as mobilizações de 2013 não foram menos
significativas. Ao contrário, foram, talvez, mais impressionantes, por isso
mesmo. No intervalo de poucas semanas, todos os governos e instituições do
regime passaram, em graus diferentes de desconfiança, por um sério
questionamento.
Em 2013, as ruas foram ocupadas
pela juventude assalariada com maior instrução, em sua maioria precarizada em
empregos de salários baixos. Os batalhões mais maduros do proletariado
estiveram ausentes, embora apoiassem. As tentativas de unir junho com o movimento
organizado dos trabalhadores em dois dias de greve nacional sob um programa de
reivindicações com um corte de classe mais definido, embora fossem a
perspectiva mais animadora, foram insatisfatórias. Dilma Rousseff venceu as
eleições, apesar de junho. Mas as eleições de 2014 confirmaram o desgaste do
governo de coalizão nas grandes cidades do país, onde se concentra o
proletariado. Se 1984 marcou a ascensão do PT à força política nacional, 2013
sinalizou a decadência do lulismo, confirmada nas urnas de 2014.
A classe trabalhadora não é a
mesma de trinta anos atrás
O que nos remete à análise do
que mudou. O Brasil de 2014 é um país muito diferente do Brasil de trinta anos
atrás. Nunca o país conheceu um intervalo histórico de regime
democrático-liberal tão longo. Poucas sociedades contemporâneas viveram, em
intervalo histórico tão breve, transformações tão significativas. O Brasil
duplicou o seu PIB e a sua população nesses trinta anos. Mas esses dois
indicadores, que evoluíam nas décadas anteriores aos anos 1980, aceleradamente,
passaram a ter dinâmicas muito mais lentas.
O Brasil da alvorada do século
21 é agora uma nação com crescimento lento, que caiu da média histórica em
torno de 7% ao ano para algo inferior a 2,5%, e a taxa de fecundidade desabou
de mais de 5% para menos de 2%. A desaceleração econômica foi compensada,
parcialmente, pela transição demográfica, mas isso não impediu que a
desigualdade social, embora tenha sofrido oscilações nesses trinta anos, já que
aumentou nos anos 1990 e caiu nos anos 2000, não tenha diminuído de forma
significativa. O Brasil permaneceu, essencialmente, depois de três décadas de
regime democrático-eleitoral, um país ainda entre os mais injustos.
Essa perspectiva histórica é
indispensável para atribuir sentido à avalanche de mobilizações de junho de
2013, e aos resultados eleitorais de 2014. Sem compreendê-los, será impossível
interpretar as transformações que o país viveu nesses trinta anos. A hipótese
central deste texto é que estes dois processos estão relacionados, e revelam
que os limites políticos da influência do lulismo, ou seja, a corrente político
eleitoral que governa o Brasil nos últimos doze anos, são hoje muito grandes. O
PT perdeu as eleições nas maiores cidades do país, onde se concentra a maioria
dos trabalhadores. Essa massa assalariada, que votava em esmagadora maioria no
lulismo até 2010 e não o fez em 2014, mudou, também, em muitas outras
dimensões. Há uma nova classe trabalhadora no Brasil. Ela nunca foi,
proporcionalmente à população economicamente ativa, tão grande, tão concentrada
e tão instruída.
Este proletariado pode ir além
do lulismo. Sua disposição de luta poderá favorecer uma reorganização pela
esquerda. Se encontrar uma esquerda capaz de responder ao desafio histórico de
ir além do eleitoralismo. Porque as lutas decisivas são aquelas que o futuro
nos reserva, não as que ficaram para trás.
Nota:
Foram contabilizadas 86,9 mil
horas paradas em 2012. Há, neste indicador, a confirmação de uma tendência de
aumento nas horas paradas que vem sendo percebida mais claramente desde 2009. A
série histórica também revela que o total anual de horas não trabalhadas em
2012 é o maior desde 1991 - www.dieese.org.br/balancodasgreves, consulta em
outubro 2014.
*Valério Arcary é professor
titular aposentado do IFSP.
Fonte: Correio
da Cidadania
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