Decisão
judicial que desprezou religiões africanas não é fato isolado. Para situá-la, é
preciso examinar “colonialismo”, um processo cultural muito mais profundo que
julgamos
Por Luã Braga de
Oliveira
Recentemente, no dia 28 de
Abril de 2014, fomos surpreendidos com uma decisão judicial absolutamente
controversa. O juiz Eugênio Rosa de Araújo, titular da 17ª Vara Federal,
recusou-se a dar ganho de causa a uma ação movida pelo Ministério Público
Federal. A ação pedia a retirada de uma série de vídeos do Youtube que ofendiam
o Candomblé, a Umbanda e seus praticantes. Assistindo aos vídeos, torna-se
difícil aceitar a defesa de que aquele conteúdo não ofendia as religiões
supracitadas e seus praticantes.
Porém, a tese defendida pelo
juiz rompeu de maneira muito mais brusca os limites da sensatez. Segundo
Eugênio Rosa de Araújo, as religiões afrobrasileiras em questão sequer cumpriam
os requisitos que, segundo ele, configuravam uma manifestação religiosa como
uma religião. Para ele, para algo ser considerado uma religião seria necessário
: Ter um Deus a ser venerado (assim, com “D” maiúsculo), ter um livro sagrado e
possuir um sistema hierárquico.
Como candomblecista,
proveniente de uma família com diversos praticantes de religiões
afrobrasileiras, me senti pessoalmente ofendido. Entretanto, me senti mais
ofendido enquanto cidadão e ser pensante. Primeiramente, devido ao galopante
desconhecimento do Candomblé e da Umbanda desfilado pelo juiz. Além de estas
terem um rígido sistema hierárquico, possuem um respeitável portfólio de deuses
a serem venerados. Em segundo lugar, pela constatação do estágio pouco avançado
em que nos encontramos para a superação dos elos que nos prendem a nosso
passado colonial e escravista. Estes elos manifestam-se recorrentemente nas
atitudes e nos discursos dos indivíduos na sociedade. Entretanto, ultimamente
eles tem se manifestado de maneira assustadora e preocupante nas altas esferas
políticas – e agora jurídicas –, colocando a perder os singelos passos que
demos em direção a pluralização de direitos básicos outrora restringidos a
determinados setores da sociedade.
A
discriminação enquanto elemento histórico
Não é possível discorrer sobre
o preconceito com as religiões afrobrasileiras separadamente do racismo. Desse
modo, é necessário contextualizar, politizar e historicizar as formas de
discriminação (religiosa, racial, sexual, etc.). No que tange a discriminação
racial e religiosa, é necessário trazer à tona o caráter particularmente
histórico destas práticas. O racismo não está no discurso. Ele apenas
manifesta-se no discurso. O racismo, todavia, está na forma subalterna e
subserviente na qual se deu a inserção do negro e sua cultura na sociedade de
classes e na construção do Brasil.
Isso posto, torna-se inviável
discutir o racismo e o preconceito com as religiões de matriz africana no
Brasil sem colocar como questão central a natureza escravista e colonialista da
formação do Brasil contemporâneo. Atitudes de discriminação do negro e de sua
cultura ressaltam o aspecto colonial que ainda é preservado no seio da
sociedade brasileira, manifestando-se até em políticas públicas e em decisões
judiciais, como visto. Nas palavras de Caio Prado Jr.: “O passado, aquele
passado colonial [...], aí ainda está, e bem saliente; em parte modificado, é certo,
mas presente em traços que não se deixam iludir”. Para abordar a questão do
colonialismo e seu papel na propagação de discursos discriminatórios,
utilizarei as contribuições de um filósofo tão brilhante quanto pouco explorado
atualmente no meio acadêmico: Frantz Fanon.
Descolonização
como caminho de superação
Frantz Fanon (1925-1961) foi um
psiquiatra e filósofo crítico afro-francês nascido na ilha de Martinica –
departamento ultramarino insular francês no Caribe. Ainda criança, fora
incentivado a rejeitar sua ascendência africana em favor da nacionalidade
francesa. Após receber o diploma de psiquiatria, Fanon trabalhou em um hospital
na Argélia durante a ocupação francesa. A experiência – que lhe proporcionou
contato com a faceta mais cruel do colonialismo francês – e a influência prévia
nele exercida por Aimé Cesáire e seus pensamentos o fizeram se interessar pelos
estudos anticoloniais. Sua obra contribuiu largamente para os estudos que se
aprofundaram na pós-modernidade. Fanon atribuiu uma conceituação aprofundada e
mais sofisticada ao colonialismo tal qual conhecemos. O filósofo não descrevia
o colonialismo apenas como uma subjugação física de um povo por outro, mas como
um conjunto de elementos que tinham como princípio a negação da diversidade e
da pluralidade, em favor de um determinado modo de
produção/comportamento/pensamento. Diferentemente de outras formas de
dominação, o colonialismo teria como característica ser a “negação sistemática
e estrutural da diversidade”. Segundo o autor, colonialismo seria a ”negação
sistemática do outro”.
Para Fanon, o mundo colonial é
um “mundo compartimentado e maniqueísta”. As manifestações culturais do
colonizado e do colonizador são descritas como mutuamente excludentes, de modo
que só haveria espaço no establishment para uma destas visões – no caso, a do
colonizador. Dessa forma, sendo a colonização o processo de “negação
sistemática do outro”, são comuns estratégias de desumanização. Caracterizar o
indivíduo colonizado como “não-humano” ajuda a legitimar o discurso
colonizador. São recorrentes na história instrumentos de desumanização compondo
o discurso de regimes totalitários e xenofóbicos, por exemplo. Durante o regime
nazista, pesquisas pseudocientíficas eram desenvolvidas com o objetivo de
provar que judeus e negros pertenceriam a uma raça inferior, sub-humana.
Do mesmo modo que caracterizar
o indivíduo colonizado como “não-humano” é um instrumento comum do discurso
colonialista, caracterizar sua cultura como “não-cultura” – no caso, sua
religião como “não-religião” – é igualmente comum. Visto isso, a determinação
deste juiz em não considerar as religiões de matriz africana como religiões de
fato e de direito só demonstra que o processo de descolonização pela qual a
sociedade brasileira deve passar está distante de ser completado. Não só a
descolonização não foi feita da maneira satisfatória, mas diversos atores
sociais e políticos hoje presentes e atuantes empenham-se na tentativa de
aprofundar o estágio de colonização do qual nunca nos livramos.
Por
uma educação pluriversal e polirracional
Outro pensador que contribuiu
amplamente para este debate foi Antonio Gramsci (1891-1937). Ao reformular a
teoria marxista e ressignificar o papel da superestrutura na reprodução do modo
de vida capitalista e da ideologia liberal burguesa, Gramsci desenvolveu um
importante conceito: A hegemonia cultural. Por meio dela, a ideologia da classe
dominante é disseminada de modo a ser internalizada nas classes dominadas. A
hemonia cultural garante, portanto, que as classes dominadas não só concederão
sua força de trabalho para a acumulação de riqueza da classe dominante, mas
reproduzirão os ideais e os valores desta última. Como essa hegemonia é
exercida? Gramsci afirma que a hegemonia cultural da classe dominante é exercida
através do que chamou de meios de construção de consensos. Seriam eles as
instituições responsáveis por construir os valores, o pensamento e os costumes
da sociedade capitalista. Em outras palavras, são as instituições responsáveis
por dizer o que vamos pensar, como vamos agir e que valores teremos como base
em nossas vidas. São elas: A grande mídia, as instituições religiosas, as
instituições de ensino, o núcleo familiar, etc. Dessa forma, como superar esta
conjuntura e iniciar o processo de descolonização cultural que urge ser
implementado?
O professor Renato Nogueira Jr.
(UFRRJ), em palestra no TEDxUFF, enquanto versava sobre a questão do ensino
religioso nas escolas, defendeu uma tese interessante de reestruturação da
pedagogia envolvida no ensino das religiões na escolas. Para ele, o paradigma
existente no processo pedagógico hoje é universal e monorracional. Este modelo
pedagógico seria responsável por propagar ideologias colonizantes, e só a
adoção de um processo pluriversal e polirracional de construção do conhecimento
seria capaz de subverter esta ordem. Podemos dizer, portanto, que o modelo de
construção de consensos detentor da hegemonia cultural em nossa sociedade é
universal e monorracional. A universalidade (do latim “unius” – um- e “versus” – alternativa) exclui a multiplicidade de
pensamentos, culturas, tradições e costumes, ao criar paradigmas axiomáticos e
fronteiras do conhecimento. A monorracionalidade prevê um único caminho cognitivo
para os processos construção do conhecimento. Na sociedade ocidental
capitalista e cristã, a monorracionalidade nos condiciona a pensar sob a lógica
positivista. Expoentes do pensamento filosófico ocidental – desde Platão,
passando por Descartes e Kant – fundamentam o nosso modus pensandi. Este modelo é hegemônico, pois, por meio do
discurso epistemológico, reforça o modo de produção e reprodução que é base da
sociedade capitalista. Desse modo, uma possível alternativa no combate as
práticas discriminatórias seria a implementação de um modelo pedagógico pluriversal
e polirracional nos meios de construção de consensos (escolas, mídia,
instituições religiosas, família, etc.). Não se trataria mais de buscar as
teorias/visões/ideologias que supostamente melhor interpretariam e
representariam a realidade, mas criar condições para um debate plural e
polidialógico.
A implementação deste modelo,
no entanto, esbarra nos interesses políticos, econômicos e ideológicos de
frações da sociedade que hoje controlam as instituições responsáveis por
produzir estes consensos. É de extrema dificuldade a obtenção de avanços no
debate acerca dos métodos de descolonização do pensamento e de superação dos
discursos racistas, machistas, homofóbicos – entre outros que representam a
normatividade universal e monorracional a qual estamos submetidos – sem pensar
em profundas reformas nas instituições mais conservadoras que hoje detém o
monopólio do discurso. Existem alguns esforços neste sentido, como as propostas
de democratização da comunicação, reformas na pedagogia aplicada nas escolas, ressignificação
do conceito de família – no qual se incluiriam famílias compostas por casais
homossexuais, etc. Cabe à sociedade apoiar e incentivar estes esforços de modo
a nos fazer avançar no processo de descolonização cultural – ou, ao menos, nos
fazer parar de retroceder.
Fonte: Outras
Palavras
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